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domingo, 30 de setembro de 2012

Nada acontece no meu coração



“Não sou obrigado a apresentá-lo...” – Celso Russomanno, candidato à Prefeito da capital do estado de São Paulo, referindo-se ao seu plano administrativo.

Na verdade, não é de hoje que nada acontece no meu coração a respeito da cidade de São Paulo.
Já há umas duas décadas a poluição daquela capital me provocou um escarro em plena Ipiranga com São João, justo no pico do horário de rush. Ao contrário de Augusto dos Anjos, senti-me sem um único abismo para filosofar sobre a queda daquela secreção. Acuado por tantos pés céleres a atravessar a esquina, segui até à Avenida Consolação onde, enfim, encontrei um canteiro para me livrar do horrível gosto de fuligem.
Fui em frente considerando a impossibilidade de voltar a viver numa cidade onde a sucessão de representantes dos interesses capitalistas, por puro descaso e desleixo amontoam as pessoas em tão densa concentração,
Terceira ou segunda maior cidade do mundo, São Paulo é o mais acabado exemplo da ausência de humanismo do sistema político/econômico em vertiginosa evolução desde os anos 50, quando ali fui educado pela família e pelo Instituto de Educação Caetano de Campos.
A família me ensinava a ser cordial com os mais velhos e às mulheres, proceder civilizadamente com todas as pessoas independente de gênero ou faixa etária. Por isso planejei a caminhada da São João à Consolação, evitando cuspir nos pés dos apressados transeuntes das 18 horas da Av. Ipiranga.
Já o Caetano de Campos me ensinou outras coisas, entre elas a importância histórica de São Paulo desde quando os Bandeirantes planejavam incursões pelos interiores, reunidos no ponto de partida lá na antiga bica do Largo da Memória. Os objetivos das Bandeiras eram dos mais deploráveis: prear indígenas e descobrir riquezas minerais a serem espoliadas pelos colonizadores. Mas no século XIX, já com o nome de Largo do Piques, atraindo moradores pela água da nascente, o local testemunhou os moradores do então pequeno vilarejo a planejar o cotidiano e viajantes a projetar o prosseguimento pelas longas trilhas ao sul, ao norte ou a oeste do país.
Ainda no começo daquele mesmo século se criou a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco que junto com a de Olinda é a mais antiga do Brasil e onde se planejou muitos dos principais versos da literatura romântica brasileira, como os de Castro Alves. Em São Paulo, ali se planejou a abolição da escravatura no país! A grande maioria das leis que hoje regulamentam a civilidade de toda a nação.
Até o sanduíche nacionalmente conhecido como “Bauru”, foi planejado por um estudante das Arcadas de São Francisco. Era diferente do que hoje se serve, mas quem for ao Ponto Chic, lá no Largo do Paissandu, poderá conhecer a versão original projetada por Casimiro Pinto Neto, natural da interiorana cidade que deu nome ao indevido pão com tomate, presunto e queijo. Projetado para se constituir em uma refeição, o verdadeiro bauru leva rosbife, queijo branco em pedaço grosso e dilatado no calor da chapa e, além do tomate, vem com rodelas de pepino.
As falsidades exportadas de São Paulo para o resto do país não se resumiram ao bauru. O mato-grossense Jânio Quadros, que renunciou aos 7 meses de presidência, foi outro. Mas o Ponto Chic chegou a ser frequentado pelos que planejaram a promoção da real cultura brasileira: a Semana de Arte Moderna de 1922.
Graças àquele movimento o Brasil descobriu-se em Oswald e Mário de Andrade, Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho e tantos outros.
Nasci em São Paulo, mas só tomei consciência da importância da cidade nos anos 60. Apesar de um dos mais corruptos políticos paulistas ter criado a Marcha de Deus com a Família que apoiou o mais longo e triste período da história da república, o da ditadura militar, naquele tempo planejava-se ali a resistência à opressão do país. Fosse pela UNE de Dirceu e Travassos, fosse pela luta armada de Lamarca ou Marighela.
Mesmo depois de deixar a cidade nos 70, o meu coração continuou batendo pela São Paulo que também resistia planejando muito do que melhor aconteceu no país na década através de Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, José Martinez Correa, Plínio Marcos e tantos outros do teatro, como os muitos dos festivais de música: Chico Buarque, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo. E de todas as artes: Leny Dale, Wesley Duke Lee, Rogério Sganzerla.
Foi em São Paulo que Caetano Veloso e Gilberto Gil, unidos aos Mutantes, Tom Zé, Torquato Neto, Capinam e o Maestro Rogério Duprat planejaram o Tropicalismo.
Também em São Paulo se planejou o lançamento de fenômenos como Elis Regina e Milton Nascimento. Se algo batia no coração do Brasil é porque começara a pulsar em São Paulo.
Ainda no inicio dos anos 80, a cada vez que ia a São Paulo, um novo latejar, uma nova vertente: Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e tantos outros que planejaram o movimento dos artistas independentes.
Mas, então, a cada retorno a cidade me parecia mais mofina em uma suntuosidade de pouco conteúdo e total falta de planejamento a soterrar o sorriso por seu humor de Adoniran Barbosa e o lamento por suas tragédias cotidianas de um Paulo Vanzolini.
Sofrendo decepções com a cidade onde nasci, cansei-me dela ao perceber que por pura falta de planejamento, falta de qualquer cuidado com as vidas humanas que a ocupam, tornou-se um lugar sem espaço sequer para cuspir,
Muitos shoppings, grandes restaurantes, casas de espetáculos, templos de consumo, mas tudo tão frio e artificial quanto à sobrevida em uma UTI onde se esqueceu de planejar a recuperação dos pacientes. Pacientes mantidos por sensação de vida, mas já sem reais emoções, sem real vontade, sem qualquer percepção e possibilidade de futuro, sem nenhum outro plano se não o de ir de lá pra cá, correndo atrás do que há muito perderam e já nem se recordam o que seja.
Tenho muita saudade dos amigos e das mulheres que ali amei, mas hoje, quando vou a São Paulo, fico tentando perceber o que planejam as pessoas além desse eterno e apressado ir e vir sem chegar a lugar algum. Fico tentando senti-los, mas, talvez com medo de que me cuspam nos pés, nada acontece no meu coração.

Contribuição do escritor Raul Longo.   Email: pousopoesia@gmail.com

A direita e a mídia sonham com 1964



O cenário é completamente distinto, e não há condições para golpe. Mas os conservadores, sem projeto, estão em busca de algo que rompa a pressão da maioria por mudanças e a democracia 

Por Luis Nassif, em seu blog

São significativas as semelhanças entre os tempos atuais e o período pré-64, que levou à queda de Jango e ao início do regime militar e mesmo o período 1954, que levou ao suicídio de Getúlio Vargas.
Os tempos são outros, é verdade, e há pelo menos duas diferenças fundamentais descartando a possibilidade de um mesmo desfecho: uma economia sob controle e uma presidência exercida na sua plenitude, sem vácuo de poder.

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Tirando essas diferenças, a dança é a mesma.
A falta de perspectivas da oposição em assumir o poder, ou em desenvolver um discurso propositivo, leva-a a explorar caminhos não-eleitorais.
Parte-se, então, para duas estratégias de desestabilização  – ambas em pacto com a chamada grande mídia.
Uma, a demonização dos personagens políticos. 
Antes do seu suicídio, Vargas foi submetido a uma campanha implacável, inclusive com ataques à sua honra pessoal – que, depois, revelaram-se falsos.
No quadro atual, sem espaço para criticar a presidente Dilma Rousseff, a mídia – especialmente a revista Veja – move uma campanha implacável contra Lula. Chegou  ao cúmulo de ameaçar com uma entrevista supostamente gravada (e não divulgada) de Marcos Valério, como se Valério tivesse qualquer credibilidade.
Surpreendente foi a participação de FHC, em artigo no Estadão, sustentando que o julgamento do “mensalão” marca uma nova era na política. 
Até agora, o único caso documentado de compra de votos foi no episódio da votação da emenda da reeleição – que beneficiou o próprio FHC.

***

A segunda estratégia tem sido a de levantar o fantasma da guerra fria. 
Mesmo sabendo que Jango jamais foi comunista (aliás, o personagem que mais admirava era o presidente norte-americano John Kennedy) durante meses e meses levantou-se o “perigo vermelho” como ameaça.
Grande intelectual, oposicionista, membro da banda de música da UDN, em 1963 Afonso Arino escreveu um artigo descrevendo o momento. 
Nele, mencionava o anacronismo de (em 1963!) se falar de guerra fria, logo depois de Kennedy e Kruschev terem apertado as mãos. 
E dizia que, mesmo sendo anacronismo, esse tipo de campanha acabaria levando à queda do governo pelo meio militar, devido à falta de pulso de Jango, na condução do governo.

***

O modelo de atuação da velha mídia é o mesmo de 1964, com a diferença de que hoje em dia não há vácuo de poder, como com Jango.
Primeiro, buscam-se personalidades, pessoas que detenham algum ativo público (como jornalistas, intelectuais, artistas etc.). Depois, abre-se a demanda por comentaristas ferozes. 
Para se habilitar à visibilidade ofertada, os candidatos precisam se superar na ferocidade dos ataques.
Poetas esquecidos, críticos de música, acadêmicos atrás de visibilidade, jornalistas, empenham-se em uma batalha similar às arenas romanas, onde a vitória não será do mais analítico, ponderado, sábio, mas do que souber melhor agredir o inimigo. 
É a grande noite do cachorro louco, uma selvageria sem paralelo nas últimas duas décadas.
Com sua postura de não se restringir ao julgamento do “mensalão” em si, mas permitir provocações à presidente da República e a partidos, o STF não cumpre seu papel.
Aliás, o STF do pós-golpe foi muito mais democrático do que o atual Supremo.

sábado, 29 de setembro de 2012

Carlos Nelson Coutinho: leia entrevista na íntegra

Entrevista com Carlos Nelson Coutinho, publicada na edição 153 da revista Caros Amigos, que circulou a partir de dezembro de 2009 - confira as edições anteriores na loja Caros Amigos. O intelectual marxista morreu na madrugada da quinta-feira (20), vítima de câncer.

Participaram Hamilton Octávio de Souza, Marcelo Salles, Renato Pompeu e Tatiana Merlino. Fotos: Coletivo Favela em Foco

“Sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia”

Carlos Nelson Coutinho, um dos intelectuais marxistas mais respeitados do Brasil, recebeu a Caros Amigos em seu apartamento no bairro do Cosme Velho, Rio de Janeiro, para uma conversa sobre os caminhos e descaminhos da esquerda brasileira, sua decepção com o governo Lula e as possibilidades de superação do capitalismo.
Estudioso de Antonio Gramsci, Coutinho defende a atualidade de Marx e reafirma o que disse em seu polêmico artigo “Democracia como valor universal”, publicado há 30 anos: “Sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia”
CarlosNelsonCoutinho-i2Hamilton Octávio de Souza - Queremos saber da sua história, onde nasceu, onde foi criado, como optou por esta carreira..
Caros Nelson Coutinho - Nasci na Bahia, em uma cidade do interior chamada Itabuna, mas fui para Salvador muito pequenininho, com uns 3 ou 4 anos. Me formei em Salvador, e as opções que eu fiz, fiz em Salvador. Eu nasci em 1943, glorioso ano da batalha de Stalingrado. Me formei em filosofia na Universidade Federal da Bahia, um péssimo curso, e com meus 18 ou 19 anos sabia mais do que a maioria dos professores. Meus pais eram baianos também. Meu pai era advogado e foi deputado estadual durante três legislaturas da UDN. Publicamente ele não era de esquerda, mas dentro de casa ele tinha uma posição mais aberta. Eu me tornei comunista lendo o Manifesto Comunista que o meu pai tinha na biblioteca. Ele era um homem culto, tinha livros de poesia. Minha irmã, que é mais velha, disse que eu precisava ler o Manifesto Comunista. Foi um deslumbramento. Eu devia ter uns 13 ou 14 anos. Aí fiz faculdade de Direito por dois ano porque era a faculdade onde se fazia política, e eu estava interessado em fazer política. Me dei conta que uma maneira boa de fazer política era me tornando intelectual. Aos 17 anos entrei no Partido Comunista Brasileiro, que naquela época tinha presença. O primeiro ano da faculdade foi até interessante porque tinha teoria geral do Estado, economia política, mas quando entrou o negócio de direito penal, direito civil, aí eu vi que não era a minha e fui fazer filosofia.


sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Brasil - Pobreza estrutural


Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, João Sette Whitaker aponta as causas dos problemas espaciais e segregacionistas da cidade de São Paulo 


Amanda Grecco, 
Gabriela Monteiro e
Jaqueline Gutierres, 
de São Paulo (SP)


   
Professor João Sette Whitaker - Foto: Mariana Oliveira   
“A elite brasileira não aceita que não se construam pontes para carros em lugar de metrôs, que atrapalham o trânsito com obras que duram anos. Ela não aceita que se priorizem as demandas para a cidade se tornar mais democrática.” Essa questão, levantada pelo economista e arquiteto-urbanista João Sette Whitaker, é um dos fatores que determinam medidas governamentais e que colaboram para que a situação da metrópole seja desigual. 
A segregação e a disparidade espacial de São Paulo, segundo Whitaker, são reflexos do modo como se estruturaram as cidades brasileiras desde que se formaram. Membro do Conselho Municipal de Política Urbana e professor da Universidade de São Paulo, Whitaker resgata a teoria de subdesenvolvimentismo do professor Celso Furtado, afirmando que a lógica de crescimento econômico do país é baseada no descaso com o bem estar social, principalmente das classes baixas.         
Assim, os problemas deixam de estar ligados apenas ao espaço urbano e a interesses econômicos. “A questão se estende para a área da saúde, frente à precariedade desse setor. E também para a área da educação, pela insuficiente oferta educacional aos mais pobres”, ressalta.     
Como os fatores históricos levam à atual situação conturbada do urbanismo em São Paulo?
João Sette Whitaker – O processo histórico, político e econômico das cidades brasileiras, principalmente São Paulo, é marcado pelo subdesenvolvimentismo. Ou seja, a lógica de desenvolvimento do país é baseada no antagonismo entre dois extremos: o país cresce ao se alimentar da pobreza. A renda é concentrada, a mão-de-obra barata é explorada e é de interesse do Estado que a pobreza se mantenha para que este processo não se interrompa. Nunca se trabalhou na direção de diminuir estas contradições, porque são elas que giram a economia. Essa lógica garante que o Brasil não tenha um Estado de bem estar social, atento às necessidades da população em sua amplitude. A situação é refletida no espaço da cidade pela enorme desigualdade espacial e pela segregação, onde a riqueza existe em função da própria pobreza.       
Existe alguma atitude que realmente mudaria este quadro?
O país vem passando por mudanças que escancaram estas contradições e colocam dificuldades para os governantes. Porém, mesmo que existam mudanças no campo da

  
   Para Whitaker, o país cresce ao se alimentar da pobreza
política, no urbanismo elas são mais demoradas. Mudar essa lógica significa opor-se à classe mais alta. A primeira atitude a ser tomada é por parte dos governos, de ter a coragem de encampar uma mudança radical nas prioridades das políticas urbanas. É preciso uma inversão dos investimentos públicos, favorecendo as classes mais baixas. Em vez de gastar 1,2 bilhões de reais em novas vias para carros na Marginal, gastassem esse dinheiro para fazer 10 quilômetros de metrô. Mas são obras que demorariam para ficar prontas e a construção de novas vias tem um ganho eleitoral muito mais rápido. Há também uma parte de aceitação da população. Ela pode até reclamar do quadro político e econômico, mas nem sempre vai reclamar da questão urbana. Levar as pessoas a terem atitude de mudança é um processo bastante complexo.     
Quais os primeiros passos para diminuir o trânsito de São Paulo de modo efetivo?
Não há primeiro nem segundo passo. É preciso fazer uma única coisa: uma inversão radical nos investimentos, levando- os maciçamente para o transporte público. A partir do momento em que o investimento trouxer uma qualidade melhor do serviço público, pode-se começar a taxar a utilização do carro, diminuindo a circulação. Por enquanto é muito complicado. Cria-se um preço alto para a pessoa sentir no bolso o uso de um carro, mas o que se oferece em contrapartida é muito ruim. Não existe condição política de se colocar em prática esse tipo de atitude, mas a partir do momento em que houver investimento pesado em transformação da modalidade do transporte, pode-se fazer com que as pessoas migrem para o serviço público. Essa é a única solução possível depois de um período de seis ou oito anos.   
O centro da cidade foi esquecido pelo poder público? E o que dizer sobre os novos projetos para a região?
Lá é o espaço de uma grande tensão, porque foi aos poucos sendo abandonado pelos setores de alta renda. A região ficou popular a partir da década de 1940, à medida que todos os investimentos em infraestrutura no transporte iam para lá, como em qualquer cidade do mundo, atraindo o comércio popular e uma população mais pobre. Esse movimento fez com que aos poucos as elites que moravam lá se deslocassem para outros locais. O centro foi deixado de lado pelo próprio governo e, ao longo desse processo, foi considerado degradado. Na verdade, ele é provavelmente a área da cidade mais vitalizada, com mais empregos, só que de caráter mais popular. Atualmente, com a falta de terrenos para o mercado imobiliário, passou a ser visto com olho gordo. Nesse atual governo, temos um Estado típico patrimonialista, que defende os interesses dos grupos dominantes e trabalha junto com o mercado para transformar o centro em um espaço atrativo para os investimentos. E, para isso, precisa promover a retirada da população mais pobre, sobretudo daquela que está onde eles chamam de Cracolândia. Esse é um processo chamado de gentrificação, com a retirada da população pobre e a valorização do perfil econômico de quem mora ali.   
Essa valorização de determinadas áreas da cidade feita pelo mercado imobiliário tende a ser um ciclo? Ou a terminar em uma crise?
É um ciclo e pode terminar em uma crise. Porém, é exatamente essa a lógica do mercado, de abrir novas frentes imobiliárias. Ao mesmo tempo, abre pouco para as classes mais populares, a não ser quando há auxilio do poder público, como aconteceu durante o governo Lula com as mudanças no crédito imobiliário. O mercado acaba sempre reinventando o produto imobiliário para quem já mora, já pagou ou já tem onde morar. Um bom exemplo é a questão da segurança pública. Os índices de criminalidade de São Paulo são altos, mas são iguais aos de qualquer grande cidade do mundo, como Nova Iorque. Então, na verdade, essa ideia de que é preciso viver dentro de uma fortaleza urbana é meio relativa, e muito disso foi o mercado que criou. Com isso, cria-se um efeito bola de neve, porque os assaltantes vão se interessar pelos prédios que parecem fortalezas.   
Além dos possíveis novos ‘elefantes brancos’ construídos na cidade, o que a Copa do Mundo pode trazer de melhoria para a cidade?
Esta é uma questão muito polêmica. As pessoas imaginam que as cidades se beneficiam dos eventos esportivos, mas isso é muito relativo. Primeiro porque o equipamento principal, motor da transformação, é o estádio, que nem sempre será aproveitado em futuros jogos. Em segundo lugar, a localização e os equipamentos que eles [os estádios] trazem dos outros municípios não são discutidos pela sociedade para saber se são mais necessários do que outros investimentos. Normalmente, o que vem junto são prédios de negócios e linhas de metrôs que levam às arenas. Mas será que não é preciso fazer linhas que vão para outros lugares mais urgentes da cidade? Será que não é mais necessário fazer saneamento para toda a população? O problema é que esses grandes eventos subordinam os planejamentos aos interesses privados dos organizadores dos eventos. Quem manda nos planejamentos urbanos hoje é a FIFA [Fédération Internationale de Football Association], mas quem deveria mandar é a população através de seus governantes eleitos.  
Em 2011, foi aprovado pela prefeitura um projeto de urbanização da favela de Heliópolis. A polêmica sobre esse projeto é o custo e a utilidade, já que o orçamento foi alto. Qual é a sua opinião?
É importante que haja a urbanização da favela, mas o foco dessa ação foi fazer marketing em cima da política. Em vez de realizar um projeto eficaz e racional, com um custo bem pensado, foi convidado para tal tarefa um arquiteto de renome [Ruy Ohtake] que tem pouquíssima experiência com urbanização de favela. A obra tem o intuito de aparecer, e não de resolver o que foi posto em pauta. É desconectada da realidade, um projeto um pouco estranho. Não é só caro, como é muito pouco funcional.
Superficialmente, os maiores problemas de São Paulo parecem ser moradia e transporte. Quais outras questões você apontaria? É isso mesmo: moradia, transporte e saneamento. E depois, educação e saúde para todos. Se fizéssemos essas cinco grandes revoluções, estaríamos em um novo país. Os nossos problemas são simples, a questão é que não existe a mobilização política para enfrentá-los, não há nada além disso.
(Entrevista foi publicada originalmente na revista Esquinas, publicação laboratorial do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo).

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A ascensão conservadora em SP


Por Matheus Pichonelli, em Carta Capital
Num seminário sobre a ascensão do conservadorismo em São Paulo realizado na USP no final de agosto, a filósofa Marilena Chauí provocou risos na plateia ao contar o estranhamento de uma amiga sobre o comportamento de parte dos habitantes da maior cidade do País. A amiga dizia custar a entender como pessoas tão hospitaleiras e civilizadas na vida doméstica se transformavam em “feras indomáveis” quando entravam em espaços compartilhados, como o trânsito ou as filas do banco.
É fato. Quem já acompanhou os bate-bocas diários protagonizados em disputas fratricidas pelas faixas preferenciais, barbeiragens no trânsito ou um simples carrinho de supermercado sabe do que a filósofa está falando. Nessas pequenas disputas pelos espaços públicos, brigamos, ofendemos, damos cotoveladas, estacionamos em vagas proibidas, ofendemos os garçons, o manobrista, o vendedor, o atendente, o empregado, o motoboy, a vizinha do terceiro andar…e tudo parece natural, pacífico até segunda ordem.
Burns é brasileiro. E mora (e vota) em São Paulo
Como se ganhar no grito fosse esporte popular. Não é. Como explicou Chauí no mesmo evento, essa deterioração das relações interpessoais possui raízes históricas. Tem base numa violência historicamente cristalizada que opera com base na discriminação e preconceito de classe, sexo, religião, profissão e raça. Que naturaliza as diferenças. Que não reconhece a humanidade do outro. Que confunde o exercício da consciência, da liberdade e da responsabilidade com um conjunto de regulamento típico das empresas e suas horas marcadas e regras de comportamento. E se assenta sobre as “características mais alarmantes” do neoliberalismo: o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço da vida privada.
O resultado é que sabemos tudo da intimidade da celebridade mas não somos capazes de conviver de forma civilizada nos espaços comuns, onde o “outro” é sempre uma ameaça. E corremos para nos abrigar em escolas, escoltas ou sistema de saúde privados: para nos “proteger” e nos diferenciar.
A violência é, muitas vezes, uma reação de quem vê o acesso a esses espaços antes impenetráveis como a invasão de um espaço cativo. Como se a proteção fosse violada e o prestígio, ameaçado pela presença das “gentes diferenciadas”.
Em tempos de eleição, essa violência latente ganha amplificação nos discursos. O desafio é puxar meia hora de conversa em qualquer grupo de qualquer lugar e passar menos de cinco minutos sem ouvir velhos absurdos. Discursos que, mais do que ignorância política, atestam a manifestação impune dos mais elementares preconceitos sociais.
Daí a mesmice, ouso dizer, dos questionamentos em tempos de campanha (“O senhor é a favor do aborto?”. “Vai permitir casamento entre gays?”. “Acredita em Deus?”) e posições dos candidatos (“sou a favor da ética”, como quem se posiciona a favor do sol, da saúde e da alegria). Tanto a mídia como as campanhas políticas sabem exatamente o terreno em que pisam. Por isso todos resolvem, a cada dois anos, querer saber o que pensam os líderes religiosos sobre tal e qual candidato. O referendo para as urnas passa pela benção dos homens de fé.
É como se, dotado dos padrões de comportamento religioso exigidos, o candidato fosse incapaz de mexer nas duas obsessões das classes conservadoras, base do eleitorado, e também citadas pela filósofa: a ordem e a segurança.
Esse comportamento foi, em parte, retratado na pesquisa Datafolha divulgada no domingo 23 sobre o perfil do eleitor paulistano. O levantamento mostrou que nada menos do que 79% dos eleitores acham que acreditar em Deus torna as pessoas melhores. Com perguntas como esta (eram dez no total), o instituto mostrou haver em São Paulo nada menos do que 34% de eleitores identificados como conservadores – enquanto apenas 27% se dizem liberais. O restante se diz neutro.
E o que é ser conservador em São Paulo, além do já citado talento em se estapear pela faixa de trânsito ou pelo carrinho de supermercado (afinal, paga-se para se ter razão)? Pela pesquisa, descobrimos exatamente quem confunde as atribuições do Estado com uma cerca elétrica aos medos mais inexplicáveis. Na metrópole, mostrou o Datafolha, duas em cada dez pessoas acreditam que a homossexualidade deve ser desencorajada pela sociedade. Mais: três em cada dez eleitores acham que pobres migrantes trazem problemas para a cidade; e 60% veem na “maldade das pessoas” a causa principal da violência.
É a divisão clara de quem vê o mundo por uma ótica simplista afora do próprio umbigo. E que, como consequência, cobra soluções fáceis para lidar com problemas que não consegue explicar. É o que leva uma parcela assustadora do eleitorado (41%) a considerar a pena de morte como a “melhor punição para indivíduos que cometeram crimes graves”.
O cálculo parece claro. Esse eleitor quer soluções agressivas contra tudo o que o ameace (da prisão de adolescentes infratores à proibição total das drogas) e, ao mesmo tempo, tem dificuldade em participar da vida pública, algo evidente da concepção segundo a qual os sindicatos “servem mais para fazer política do que defender os trabalhadores”, como declaram 60% dos eleitores.
Não estranhe se um dia, numa roda de conversa, identificar neste eleitor a “fera indomável” citada por Chauí. O cidadão-eleitor que em casa fala de paz, prosperidade, valores, esforço, que bota nariz de palhaço ao votar e sai às ruas, uma vez por ano, para cobrar “ética na política” pode ser capaz de promover uma hecatombe se alguém chegar perto do seu automóvel, o único elo que o diferencia numa multidão sem identidade a reproduzir uma velha violência incrustada. O reacionarismo que exige do Estado medidas duras contra tudo o que não é ele é a face mais notável da covardia.

Precisa surgir o Movimento dos Sem Jeito


Foto de Lunaé Parracho. Clique na imagem para mais fotos.

Sujeitos sem predicado, ocultos, formam o MSJ, aqueles que teimam em sobreviver, começam a pensar seriamente o porquê de a corda arrebentar sempre do mesmo lado, e anunciam em alto e bom som que a direção está mudando, e que ‘o jeito’ que o mundo precisa somente poderá partir daqueles que nasceram com tudo para serem nada na vida...

Por Washington Araújo, no blog Cidadão do Mundo

E, então, eis que a chuva voltou a São Paulo depois de quase 70 dias da segunda maior estiagem da história, quando uma desconcertante regularidade de incêndios pipocou em suas 1.650 favelas, habitadas por quase 1,5 milhão de pessoas.
E mais de 40 arderam desde janeiro; 70, incluídos os focos menores.
O descaso das “autoridades” com os “sem jeito”, que são aqueles que teimam em sobreviver, morando em condições precárias, distantes dos benefícios urbanos, de sistemas de água e esgoto, de segurança para suas moradias, de acesso a alimentos para suas famílias, migra da crônica urbana para se transmutar em impressionante evidência de descaso governamental, criminoso e francamente delinquente.
E enquanto não ganha as ruas o Movimento dos Sem Jeito, ou simplesmente MSJ, começo a pensar seriamente sobre o porquê de a corda continuar arrebentando sempre do lado mais fraco.
Os miseráveis, deserdados dos bens, que não dispõem de dinheiro em banco, teimosos como mulas, insistentes em não entregar os pontos da vida, renitentes e perseverantes na arte de viver, são os grandes sujeitos da história humana.
Sujeitos de deveres e privados de direitos. Eles são os Sem Jeito, mesmo não sendo assim reconhecidos, assim continuam tratados. São Sem Jeito porque não se conformam em ter a miséria como sua riqueza, nem a pobreza como seu estigma, a doença como sua marca, a fome como punição diária, exterminando geração a geração.
Sujeitos sem predicados. Geralmente entram na história oficial pela porta dos fundos. Não são de ostentação: nem diplomas, nem feitos, nem terras, nem sobrenomes bimestrais quanto mais quatrocentões. São anônimos em um sociedade que preza o reino dos nomes, das alcunhas valiosas, dos pomposos pronomes de tratamento.
Sujeitos ocultos. Normalmente engrossam estatísticas nada lisonjeiras: freqüentam listas de desempregados, alimentam filas intermináveis de postos de saúde periféricos, são assíduos do velho hábito de caminhar e, muitas vezes, passageiros habituais de transportes públicos superlotados.
Sujeitos invisíveis. São encontrados em shows ao ar livre, “de grátis”, associados a alguma data comemorativa da nacionalidade ou apenas da cidade ou rincão onde vivem. A invisibilidade lhes cai bem como roupa feita sob medida. Não são encontrados em mesas onde se discutem o futuro do município, o desenvolvimento da cidade, o progresso do Estado, e muito menos onde se lança o olhar em direção ao futuro do país. É uma invisibilidade social, porque só se verifica em uma sociedade em que o valor está intimamente associado à propriedade de bens móveis e imóveis, à conquista de bens culturais, à sorte de ostentar algum sobrenome luminoso. Na estrada da vida, há muito lhe subtraíram a condição humana, deixando-lhes ostentar apenas a condição de sinal de trânsito, árvore plantada à margem da estrada, imenso outdoor anunciando a nova promoção da semana. Estão ali, e também por toda a parte. Mas, no fundo, se confundem facilmente com a paisagem: são placas, são postes, são semáforos, são árvores. 
Menos gente, seres humanos.


Foto de Lunaé Parracho. Clique na imagem para mais fotos.

Sujeitos teimosos. Têm tudo para não existir e nem mesmo deixar rastros de suas existências. Mantém aquela fé inabalável digna de um Moisés retirante abrindo mares e caminhando avante por toda a trajetória da vida rumo à terra prometida. Renitentes, são alvos prediletos das forças de segurança. Praticam tudo o que estiver à margem da lei para conseguir se evadir da realidade insuportável e sufocante.
É quando começa a tomar forma o Movimento dos Sem Jeito, o movimento que abarcará essa massa desfocada para os velhos cabeças-de-planilha, todos herdeiros do pensamento expresso em tabelas Excel. Os velhos antagonistas de sempre, estes mesmos que disfarçados de protagonistas enfermaram a maioria da população, perdem seu chão, se confundem na noção do tempo em que vivem.
Os que chegam ao MSJ sabem que chegou a sua vez. A vez de freqüentar escolas, a vez de ter alimento sobre a mesa, a vez de se alvo de cuidados médicos. A vez de conduzir consigo uma sempre adiada carteira profissional, a vez de planejar seu futuro e o futuro dos seus descendentes.
O MSJ começa a anunciar aos quatro ventos que os muros seculares separando as casas grandes das grandes senzalas começaram a ser derrubados. O cimento da hipocrisia social já não mais mantém os tijolos da discriminação e do preconceito ordenados em forma de muros, fronteiras imaginárias que resistem a desaparecer nos horizontes da cidadania plena, total e abarcadora.
O MSJ entende que o que não tem jeito ajeitado está – assim como o que não tem remédio, remediado está. E percebe que os tempos mudaram de direção – as pressões que vinham de cima para baixo agora se levantam com força e rara intensidade no sentido baixo para cima.
O MSJ não se informa pelos meios de comunicação tradicionais, monopólios midiáticos que se mantém às custas da desinformação e da informação intencionalmente truncada, notícias plantadas e fatos divulgados pela metade. Agindo assim, o MSJ lhes subtrai legitimidade para falar em nome deles, cassando seu autoconferido direito de usar a surrada expressão “opinião pública”.
O MSJ declara em alto e bom som que chegou a hora da abolição da escravatura mental, a libertação das amarras do pensamento único, exclusivo e excludente. E sua palavra de ordem é um libelo contra toda forma de colonização de um pensamento sobre os demais pensamentos.
O MSJ surge no horizonte auriverde não como miragem, nem utopia, nem sonho de velhas noites de verão, encharcados de perdidas esperanças. Surge sim como os primeiros raios de sol emitidos após tenebrosa noite de privações e suplícios. Noite que ultrapassando contadas horas se espraiam por anos, décadas e séculos, interrompendo vidas aos milhões, encerrando na degradação inteiras gerações de seres humanos.
É porque ‘o jeito’ que o mundo precisa somente poderá partir daqueles que nasceram com tudo para serem na vida… sem jeito.


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Eduardo Galeano lança novo livro e afirma: “Fomos treinados para ter medo de tudo”

A cada dia, nasce uma história em “Os filhos dos dias”, novo livro do escritor uruguaio. São 366 textos que, segundo Galeano, são histórias de invisíveis que merecem ser contadas. Confira a entrevista

eduardo galeano literatura abortoPublicado por Brasil de Fato, original de La Republica



Por que este título: Os filhos dos dias?
Segundo os maias, nós somos filhos dos dias, ou seja, o tempo é que estabelece o espaço. O tempo é nosso pai e nossa mãe e, como somos filhos dos dias, o mais natural é que a cada dia nasça uma história. Somos feitos de átomos, mas também de histórias.
Dentro dessas histórias há muitas vinculadas à nossa vida cotidiana. Você assinala: “vivemos em um mundo inseguro”. A particularidade é que projeta que existem diferentes concepções sobre a insegurança. A que se refere?
Muitos políticos no mundo inteiro, não é algo que passa somente em nosso país, exploram um tipo de histeria coletiva a respeito do tema da insegurança. Te ensinam a ver o próximo como uma ameaça e te proíbem de vê-lo como uma promessa, ou seja, o próximo, esse senhor, essa senhora que anda por aí, pode roubar-te, sequestrar-te, enganar-te, mentir para você, raramente oferecer-te algo que valha a pena receber. Creio que essa forma parte de uma ditadura universal do medo. Fomos treinados para ter medo de tudo e de todos e este é o álibi que necessita a estrutura militar do mundo. Este é um mundo que destina metade de seus recursos à arte de matar o próximo. Os gastos militares, que são o nome artístico dos gastos criminais, necessitam de um álibi. As armas necessitam da guerra, como os abrigos necessitam do inverno.

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Quando fala dos medos, você joga com essa palavra para assim mencionar os meios e tem uma história que é “os meios de comunicação”. A que lugar você atribui aos meios em nossos medos?
Às vezes, os meios atuam como medos de comunicação, então, se convertem em medos de incomunicação. Isto não é verdade para todos, mas sim para alguns meios que no mundo inteiro exploram esse tipo de histeria coletiva desatada com o tema da insegurança. Mentem, porque a insegurança não se reduz à insegurança que se pode sofrer nas ruas. Inseguro é este mundo e a primeira é a insegurança no trabalho, que é a mais grave de todas e da qual nunca falam os políticos que exploram o tema da insegurança. Não há nada mais inseguro que o trabalho. Todos nos perguntamos: e amanhã, haverá quem me contrate? Voltarei ao lugar de trabalho onde estive hoje? Terá alguém ocupado meu lugar?
Esse medo real de perder o trabalho ou de não encontrá-lo é a fonte de insegurança mais importante. Tão inseguro é o mundo, a quantidade de pessoas que matam os carros nisso que chamamos acidentes de trânsito, na realidade são atos criminosos por conta dos condutores que tendo permissão de dirigir, tem permissão para matar, ou a insegurança da maioria das crianças que nascem no mundo condenados a morrer muito cedo de fome ou de enfermidade incurável.
Aparecem as histórias dos desaparecidos, mas lhe menciono uma em particular, chamada Plano Condor, onde a história que se conta pertence a Macarena Gelma. Como foi para você conhecer Macarena Gelman?
Comecei conhecendo ao pai de Macarena (Marcelo) e ao avô Juan (Gelman) com quem trabalhei junto na revista Crisis em Buenos Aires e que é meu amigo de toda a vida. São muitos anos de amizade, ou melhor, de irmandade. Juan (Gelman) teve que sair da Argentina para continuar vivo, naqueles dias que se viviam em Buenos Aires, onde tinha que ir ou esconder-se. Então, eu recebia com muita frequência a seu filho Marcelo e me fiz de pai por algum tempo, depois o mataram, e a outra história é bastante conhecida.
A mulher de Marcelo (María Claudia) foi sequestrada na Argentina. Eram acusados do crime de protestar, delitos de dignidade que tem a ver com o direito estudantil ao protesto. Esses eram os crimes dos meninos, como eles foram assassinados muito cedo. A María Claudia assassinaram no Uruguai, onde já funcionava o mercado comum da morte, que foi o melhor em funcionamento, porque o Mercosul ainda tinha dificuldades graves. O mercado da morte funcionou muito bem naquelas horas do terror onde as ditaduras trocavam favores. Mandaram María Claudia grávida para o Uruguai e aqui os militares uruguaios se encarregaram do trabalho. Esperaram ela dar à luz, ela passou seus últimos dias, ou talvez seus últimos meses, na sede do Bulevar Artigas e Palmar (SID) onde descobriu-se a placa em memória de María Claudia e todos os que estiveram ali.
Me impressionou o contraste pela beleza exterior do palácio e os horrores que escondia. Depois de dar à luz, a mataram e entregaram seu filho(a) a um policial, troca de favores. A partir de uma busca complicada de Juan (Gelman) e seus amigos, conseguiu encontrá-la e agora chama-se Macarena Gelman. Nós tornamos muito amigos e uma vez jantando em casa, me contou essa história que é parte das histórias de “Os filhos dos dias” (livro). É uma história muito íntima, muito particular e lhe pedi autorização para publicá-la. É uma história rara, mas reveladora. Conta que quando ainda não sabia quem era e vivia em outra casa, com outro nome, nesse período sofria de insônia contínua, que não a deixavam dormir a noite porque a perseguia sempre o mesmo pesadelo. Via uns senhores desconhecidos muito armados que a buscavam no dormitório onde estava dormindo, debaixo da cama, no guarda-roupa e em todas as partes e ela acordava gritando e angustiadíssima.
Durante muitíssimo tempo, toda sua infância teve esse pesadelo que a perseguia e ela não sabia o por quê, de onde vinha. Até que conheceu sua verdadeira história e soube que estava sonhando os pesadelos que sua mãe havia vivido enquanto a formava no ventre. A mãe, uma estudante de apenas 19 anos, era perseguida de verdade por outros senhores armados até os dentes que a encontraram e a mandaram para morrer no Uruguai. Macarena estava no ventre dessa mulher acoada e perseguida. Desde o ventre padecia a perseguição que sua mãe sofria e depois a sonhou e se converteu em seus próprios pesadelos. Ela sonhou o que sua mãe havia vivido. É uma história que parece uma metáfora da transmissão, das penas, dos horrores, e também de outras continuidades que não são todas horríveis.
É um livro que contém muitas histórias de mulheres. Por que?
Também há muitas histórias de mulheres em meus livros anteriores, como Espelhos e Bocas do Tempo. Há muitas histórias dos invisíveis, e as mulheres ainda são bastante invisíveis. Há histórias de negros, de índios, das culturas ignoradas, das pessoas ignoradas e que merecem ser redescobertas porque têm algo para dizer e vale a pena escutar.
Neste último livro (Os filhos dos dias) há uma história que me impressionou muito, e que não havia escrito até agora, a de Juana Azurduy. Juana foi uma heroína das guerras de independência. Encabeçou a tomada do Cerro de Potosí que estava nas mãos dos espanhóis. Ela era a chefe de um grupo guerrilheiro que recuperou Potosí das mãos espanholas.
Depois seguiu guerreando pela independência, perdeu seus 7 filhos e seu marido nessa guerra. Finalmente, foi enterrada em uma fossa comum e morreu na pobreza mais pobre que se possa imaginar. Antes havia recebido um título militar, foram as forças independentistas as que lhe deram um título que dizia em mérito: “a sua viril coragem”. Precisou-se de muito tempo para que uma presidenta argentina (Cristina Fernández) a outorgasse o título de General por sua feminina valentia.
Há muitas histórias dos povos originários, da luta pelos recursos naturais, e o rol das multinacionais. Em particular, uma história dedicada à selva amazônica.
Essa história sobre a Amazônia recorda que a Texaco, empresa petroleira que derramou veneno durante muitos anos, arruinou boa parte da solva equatoriana. Foi a juízo, mas perdeu. As vítimas desse atentado à natureza e às pessoas desse lugar não tinham meios econômicos, enquanto a Texaco contava com centenas de advogados. Ao cabo de anos, contudo, o pleito foi ganho, mas ainda não se colocou em prática, porque há muitas maneiras de se apelar, e de tirar a bola para fora e para isso não faltam doutores.
No livro tem um olhar crítico sobre os governos progressistas que ainda não descriminalizaram o aborto.
O livro toca todos os temas sempre a partir de histórias concretas. Não é um livro teórico.
As 366 histórias não são somente latino-americanas, você percorre o mundo.
Há muitas histórias que merecem ser recuperadas. Luana, por exemplo, foi a primeira mulher que firmou seus escritos nas tábuas de barro. Ocorreu há quatro mil anos e dizia que escrever era uma festa. Essa mulher é desconhecida. E vale a pena contar que essa história existiu.
A respeito da crise internacional , você resgata o que ocorreu na Islândia e o movimento dos indignados na Espanha.
Esta crise provém de um círculo muito pequeno de banqueiros onipotentes. Me ocorreu para esta história um título sinistro que foi “adote um banqueiro”. Os responsáveis da crise são os que mais têm se queixado e os que mais dinheiro tem recebido. Eles têm sido recompensados por fundir o planeta. Todo esse dinheiro que destinou aos que causaram o pior desastre na história da humanidade seria suficiente para dar comida aos famintos do mundo com sobra, inclusive.
Você acha uma contradição a existência do movimento dos indignados e que, ao mesmo tempo, tenha ganhado o Partido Popular na Espanha?
A aparição dos indignados é o que de mais lindo ocorreu no mundo nos últimos tempos. Creio que o melhor da vida é sua capacidade de surpresa. O melhor dos meus dias é o que ainda não vivi. Cada vez que uma cigana me cerca para ler a minha mão a peço por favor que a pague, mas que não leia. Não quero que me digam o que vai me ocorrer, o melhor que a vida tem é a curiosidade e a curiosidade nasce da ignorância do destino. A explosão dos indignados começou na Espanha, e depois se estendeu em outras partes. É uma boa notícia a capacidade de indignação. Bem dizia meu mestre brasileiro Darcy Ribeiro (intelectual brasileiro já falecido) que o mundo se divide entre os indignos e os indignados e que tem-se que tomar partido, há que se eleger.
Pensei muito nele quando surgiu este movimento. Jovens que perderam seus empregos e suas casas por responsabilidade desses malabarismos financeiros que acabaram despojando os inocentes de seus bens. Eles não foram os que pegaram empréstimos impossíveis, não foram eles os culpados da bolha financeira e deste disparate que aconteceu na Espanha de construir e construir e agora está cheia de moradias desabitadas e gente sem casa.
O PP ganhou a eleição, é verdade. A direita ganhou as eleições, e terá que lutar para que isso mude. Isto que aconteceu na Espanha também fala do desprestígio de forças de esquerda que entram na vida política prometendo mudanças radicais, e depois terminam repetindo a história, ao invés de mudá-la. Muitas pessoas, sobretudo os jovens, se sentem desapontadas e abandonam a política.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

De golpe em golpe, a Casa Grande se perpetua





por Paulo Metri – conselheiro da Federação Brasileira de Associações de Engenheiros e do Clube de Engenharia

Até que enfim o Brasil está destravando. Agora, vai ser para valer. Depois do julgamento do mensalão, teremos o do mensalão mineiro, aqueles derivados das operações Satiagraha, Castelo de Areia, Vampiro…
Operações da Polícia Federal, até hoje sem conseqüências judiciais, mas cheias de descobertas escabrosas, não faltam.
O Ministério Público Federal e a Procuradoria Geral da República vão ter muito que fazer nas suas áreas de competência, pois cuidarão de diversos processos para encaminhar aos Tribunais.
Os potenciais fichas-sujas, que sempre estiveram escondidos nos trâmites burocráticos, coloquem suas barbas de molho, pois seus períodos de impunidade estão prestes a terminar.
Quem sabe se, agora, o réu confesso Ronivon Santiago não vai conseguir a paz?
Ele queria, salvo engano, expiar sua culpa, pois confessou ter vendido por R$ 200.000 seu voto parlamentar em troca de apoiar a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, segundo reportagem da Folha de São Paulo de 13/5/1997.
Os preços mínimos e o modelo de privatização, que levaram as empresas estatais a serem privatizadas por preços muito baixos no período FHC, podem ser investigados.
Aliás, para este caso, o livro “Privataria Tucana” pode vir a ser útil.
Há pouco tempo, circulou na internet um correio com uma extensa lista de escândalos sem solução do Brasil nos últimos anos. Assim, muitos dos processos, que dormem em pilhas há anos, com o beneplácito dos “engavetadores”, vão ser acordados.
Depois desta “passada a limpo”, não haverá mais denúncia sem a devida averiguação e a eventual abertura de processo.
Neste ponto do sonho, me acordam e jogam contra mim a dura realidade, que chega a doer.
Existirá tão somente este julgamento, o do suposto mensalão.
Portanto, não é um processo global de respeito à Justiça.
É um julgamento único, que também deve existir, e como em todos os julgamentos, nele, a justiça também deve prevalecer.
Aliás, a eventual culpa dos que podem estar comprometendo todo um belo projeto de libertação dos miseráveis deve ser punida.
Entretanto, espantos relevantes existem. Só este processo? Julgado exatamente no presente momento, quando se está próximo da eleição municipal, que certamente irá influenciar os rumos da campanha presidencial de 2014? Com razoável celeridade, por sinal bem vinda, mas incomum na nossa Justiça?
Pode-se até dizer que, para certos grupos políticos, este julgamento veio a calhar, pois os ajuda de montão. As más línguas chegam a lançar versões venenosas, dizendo que é um julgamento encomendado. Não compartilho de tamanha agressão, pois, nesta versão, grupamentos políticos estariam utilizando a justiça como instrumento para chegar ao poder.
Contudo, é verdade que, toda vez que classes menos favorecidas têm alguma melhoria de vida significativa, alguma mais valia deixa de ser usurpada e classes abastadas ficam ligeiramente menos ricas. O prejuízo nem é tão grande, mas, para criar exemplos, este horror precisa ser contido.
Neste momento, os donos do capital chamam, dependendo do momento histórico e do local, forças diversas para socorrê-los. No Brasil, em 1964, foram chamados os militares para auxiliar na perpetuação da má distribuição de renda, que aceitaram a proposta em troca do mando da nação, exceto em qualquer área que comprometesse a lucratividade das classes mais ricas. Ocorreu, assim, um golpe militar.
Recentemente, no Paraguai, foram chamados os próprios representantes da classe dominante, que compõem a quase totalidade dos integrantes do Congresso. Foi um golpe legislativo. Em alguns países, os donos de capital locais se aliam até com forças estrangeiras para dominar seus compatriotas, que não se subjugam à exploração. Tem-se, assim, um golpe militar com apoio de forças estrangeiras.
O golpe dos integrantes da Casa Grande em processo no Brasil, hoje, é tão ardiloso que quem o denuncia é rotulado como pertencente ao PT ou corrupto interessado no perdão dos culpados (assim definidos a priori). Nunca será visto como interessado na continuidade do processo de inclusão social em curso há dez anos. Ou alguém tem dúvida que a paralisação desta inclusão é o passo seguinte após as vitórias eleitorais do grupo conservador, se isto ocorrer?
É óbvio que não podemos retirar os créditos merecidos da mídia caluniosa. 
As televisões, onde a grande massa brasileira obtém informações, não divulga os verdadeiros fatos, deforma a realidade com versões deturpadas, ludibria, mente, enfim, prejudica a sociedade e está sempre a serviço do capital. Na mídia, existem exceções honrosas, como, por exemplo, a revista Carta Capital. Mas, todo golpe tem suporte midiático.
Sobre este ponto, não me esqueço da imagem recente de um articulista sofrível colocado para ser comentarista de um grande canal de televisão, que falava sobre o mensalão. Assim, tendo que desenvolver o raciocínio que lhe ordenaram, sem grande afinidade com questões jurídicas, era uma figura estranha. Mas não existia inocência nele, pois seu salário certamente é muito alto. Era uma mensagem para o grande público sobre a culpa de José Dirceu, mas com o intuito de constranger os ministros do Supremo, uma vez que os votos destes não poderão fugir ao óbvio ensinado, sob pena de ser algo “muito errado”.
Há esperança de que, mais uma vez, um desenvolvimento tecnológico esteja quebrando um monopólio de controle das mentes. 
A Igreja perdeu este controle, detido através dos monges copistas, quando publicava só o que era de seu interesse, à medida que Gutemberg inventou a prensa para produção de impressos em série. 
Atualmente, a internet seria o desenvolvimento tecnológico que permite à população ter acesso a diferentes versões para o que acontece, ou seja, ela mostra um novo mundo escondido pela mídia convencional e corrupta. 
Afinal de contas, estou sendo lido, agora, graças à internet.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Covardia Nacional: juíza do Pinheirinho tenta censurar samba-enredo

G1

Juíza entra com ação contra autor de samba-enredo sobre o Pinheirinho 

Márcia Loureiro alega que foi pessoalmente ofendida pela música. 
Para defesa do autor, ação visa impedir a liberdade de expressão cultural.
 
 
Juíza Márcia Loureiro, da 6ª Vara Cível de São José dos
Campos. (Foto: Reprodução/TV Vanguarda)
A juíza Márcia Loureiro, da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, ingressou com uma representação criminal por calúnia, difamação e injúria contra Renato Bento Luiz, autor do samba-enredo "Covardia Nacional" (veja a letra abaixo), que foi apresentado no carnaval deste ano na cidade, no bloco "Acorda Peão", que é organizado pelo Sindicato dos Metalúrgicos.

A música faz alusão à desocupação do Pinheirinho ocorrida em janeiro. Cerca de 1.500 famílias foram desalojadas em uma ação da Polícia Militar para reintegração de posse da área que havia sido invadida há oito anos. A área, na zona sul da cidade, pertence ao especulador Naji Nahas.

A ação foi encaminhada pelo Ministério Público para a Polícia Civil, que instaurou um inquérito policial sobre o caso. “Vamos ouvir as partes e também um CD que foi apreendido com o teor exato da música. Assim que concluirmos as investigações, enviamos a ação para o MP que decide se vai ofertar denúncia ou não”, explica o delegado Alvaro de Sá.

Na representação criminal, a juíza afirma que foi pessoalmente ofendida pela música e que carros alegóricos do bloco fazem alusão à ela, que foi quem decidiu pela reintegração de posse.

Para o advogado de defesa de Renato, Dênis Lantier, a ação visa impedir a liberdade de expressão cultural. “Ela (a juíza) está tentando censurar a letra do samba. A letra é impessoal e não foi direcionada para a pessoa da Márcia. Essa medida é um ataque à criação carnavalesca”, diz.

O autor do samba-enredo deve ser ouvido pela Polícia Civil nesta sexta-feira (21). Já o depoimento da juíza ainda não tem data para acontecer.

O G1 procurou a advogada da juíza Márcia Loureiro nos últimos dois dias, mas até a publicação desta reportagem ela não havia retornado os contatos.


Veja a letra de "Covardia Nacional"

A moradia é um direito constitucional
Atacaram o Pinheirinho, covardia nacional
Alckmin e Cury sujaram de sangue este chão
Promessa de casa é até passar a eleição

Sou vereador da situação
Fiquei quietinho, o Pinheirinho está no chão
Pinheirinho e estudante é um tormento
Se juntaram e derrubaram meu aumento

Desaproprie o Pinheirinho
Dilma vem pra luta agora
Pra mostrar a diferença dos tucanos
tá na hora

Prefeitura e a Justiça
Comando do batalhão
Mete bala em inocente
e liberta o ladrão

É Carnaval e o bandido vai pra farra
gastar a propina do Naji Nahas

Falou Eliana Calmon
Espalha rápido essa droga
Em São José já tem bandido de toga

Vai ter punição, isto é Brasil
Só que ela vem lá em 1º de abril

A moral desta gente não se mede
Dizia Cazuza: a burguesia fede

Educação: a “prioridade nacional” e o discurso cínico



Superar atraso brasileiro requer investimento público. Mídia prefere opor professores a alunos e sugerir que boa gestão se faz sem recursos…


Por Daniel Cara, na Revista Educação

Diversos veículos da grande imprensa têm pecado pela fragilidade de argumentos no debate educacional brasileiro. Tirando algumas exceções, a maioria tem trazido simplificações equivocadas e discursos cínicos. O aspecto mais preocupante do fenômeno é o grave abandono do bom senso e da ulterior agenda dos direitos, como o direito a uma escola pública digna para se estudar. A opinião pública, a cada dia, vai se acostumando com uma agenda educacional medíocre, definida por termos que pouco ou nada dizem, como “expectativas de aprendizagem”, “exposição do aluno à aprendizagem” e outros disparates das mesmas e infelizes fontes terminológicas.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Joaquim pune e sorri

Por descuido de assessores de gabinete, vazaram para o site do Supremo Tribunal Federal cerca de 30 páginas onde estão alinhavadas as penas que o ministro Joaquim Barbosa planejou, nesta nova etapa, para os réus da Ação Penal 470, identificada pela imprensa como “mensalão”. 

A distração foi retirada do ar.

Foi exibido por tempo suficiente, no entanto, o rigor das punições projetadas pelo relator. Para o publicitário Marcos Valério, por exemplo, propõe 12 anos e 7 meses de reclusão pelo crime de lavagem de dinheiro, além de 340 dias-multa. A esse tempo vão se juntar as punições anteriores e as que ainda virão.
 
Barbosa. Talvez lhe conviesse ouvir o ex-colega Peluso ou ler o Marquês de Beccaria.
Foto: Gervásio Baptista / SCO / STF
 
 
A tendência de Joaquim Barbosa é a de punir com dureza. Segue, nestes momentos, o principio dura lex sed lex. (Anotou o latinista Paulo Rónai, que a expressão ficou popular no Brasil por um pitoresco anúncio comercial: “Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex”.)
Respeitadas as decisões do magistrado, deve ser considerada, porém, a advertência de Beccaria sobre a relação entre os delitos cometidos e as penas aplicadas: “Toda severidade que ultrapasse os limites se torna supérflua e, por conseguinte, tirânica”.
Poucas semanas atrás, ao se aposentar, o se­vero ministro Cezar Peluso generalizou equivocadamente um sentimento pessoal: “Nada constrange mais o magistrado do que condenar o réu em uma ação penal”.
Joaquim Barbosa, no entanto, tem exibido sor­risos irônicos e meneios de cabeça ao desmanchar argumentos dos réus. Não mostra constrangimento. Esses gestos, esgares, dão um toque cruel ao poder soberano do julgador.
Os ilícitos chamados “mensalões”, do PT, do PSDB, do DEM, juntados à “CPI do Cachoeira”, envolvendo parlamentares, criminalizam a política como um todo e acirram o moralismo maniqueísta da sociedade. Nesse contexto ocorre o julgamento da Ação Penal 470 e, assim, o ministro relator ganha o papel de personagem principal do enredo, apoiado pela maioria do tribunal.
Barbosa, aplaudido pela mídia, é tratado como herói em restaurantes e outros ambientes fechados e privilegiados. Um heroísmo sem riscos. 
O ministro navega a favor do vento e em mar sem procelas.
Barbosa chegou ao STF, no governo Lula, beneficiado pelo princípio da cota racial e por indicação de Frei Betto, que tinha, então, trânsito fácil e grande influência junto ao presidente. 
É verdade, porém, que esse ex-procurador da República tem currículo robusto. Tem, também, uma história pessoal que mostra fôlego de maratonista em trajeto especial. Saltou obstáculos sociais e materiais.
De onde partiu, acertaria quem previsse que não iria longe. Ele frustrou as expectativas. 
Essa corrida de longa distância, porém, deixa marcas.
Na segunda quinzena de novembro, Joaquim Barbosa assumirá a presidência do STF. 
Não é fácil colar rótulos no perfil do magistrado que chega ao apogeu. 
A fé católica, por exemplo, não impede que declare com firmeza sua posição a favor da legalização do aborto. 
Na pequena biografia dele registrada na Wikipédia, pode-se ler: “No mais polêmico julgamento desde que tomou posse no tribunal, votou a favor da tese de que políticos condenados em primeira instância poderiam ter sua candidatura anulada”.
Foi voto vencido. 
Mas a manifesta aversão ao mundo político, que o favoreceu com uma cadeira no STF, é um caminho para compreender Joaquim Barbosa. 
Esse rancor faz dele vítima preferencial da política.
 
Mauricio Dias
No CartaCapital

E O GOVERNO FINANCIA A DIREITA ...



Rui Martins / Berna (Suiça) - Daqui de longe, vendo o tumulto provocado com o processo Mensalão e a grande imprensa assanhada, me parece assistir a um show de hospício, no qual os réus e suspeitos financiam seus acusadores. O Brasil padece de sadomasoquismo, mas quem bate sempre é a direita e quem chora e geme é a esquerda.
Não vou sequer falar do Mensalão, em si mesmo, porque aqui na Suíça, país considerado dos mais honestos politicamente, ninguém entende o que se passa no Brasil. Pela simples razão de que os suíços têm seu Mensalão, perfeitamente legal e integrado na estrutura política do país.
Cada deputado ou senador eleito é imediatamente contatado por bancos, laboratórios farmacêuticos, seguradoras, investidores e outros grupos para fazer parte do conselho de administração, mediante um régio pagamento mensal. Um antigo presidente da Câmara dos deputados, Peter Hess, era vice-presidente de 42 conselhos de administração de empresas suíças e faturava cerca de meio-milhão de dólares mensais.
Com tal generosidade, na verdade uma versão helvética do Mensalão, os grupos econômicos que governam a Suíça têm assegurada a vitória dos seus projetos de lei e a derrota das propostas indesejáveis. E nunca houve uma grita geral da imprensa suíça contra esse tipo de controle e colonização do parlamento suíço.
Por que me parece masoca a esquerda brasileira e nisso incluo a presidente Dilma Rousseff e o PT ? Porque parecem gozar com as chicotadas desmoralizantes desferidas pelos rebotalhos da grande imprensa. Pelo menos é essa minha impressão ao ler a prodigalidade com que o governo Dilma premia os grupos econômicos seus detratores.
Batam, batam que eu gosto, parece dizer o governo ao distribuir 70% da verba federal para a publicidade aos dez maiores veículos de informação (jornais, rádios e tevês), justamente os mais conservadores e direitistas do país, contrários ao PT, ao ex-presidente Lula e à atual presidenta Dilma.
Quando soube dessa postura masoquista do governo, fui logo querer saber quem é o responsável por essa distribuição absurda que exclui e marginaliza a sempre moribunda mídia da esquerda e ignora os blogueiros, responsáveis pela correta informação em circulação no país.
Trata-se de uma colega de O Globo, Helena Chagas, para quem a partilha é justa – recebe mais quem tem mais audiência! diz ela.
Mas isso é um raciocínio minimalista! Então, o povo elege um governo de centro-esquerda e quando esse governo tem o poder decide alimentar seus inimigos em lugar de aproveitar o momento para desenvolver a imprensa nanica de esquerda ?
O Brasil de Fato, a revista Caros Amigos, o Correio do Brasil fazem das tripas coração para sobreviver, seus articulistas trabalham por nada ou quase nada, assim como centenas de blogueiros, defendendo a política social do governo e a senhora Helena Chagas com o aval da Dilma Rousseff nem dá bola, entrega tudo para a Veja, Globo, Folha, SBT, Record, Estadão e outros do mesmo time ?
Assim, realmente, não dá para se entender a política de comunicação do governo. Será que todos nós jornalistas de esquerda que votamos na Dilma somos paspalhos ?
Aqui na Europa, onde acabei ficando depois da ditadura militar, existe um equilíbrio na mídia. A França tem Le Figaro, mas existe também o Libération e o Nouvel Observateur. Em todos os países existem opções de direita e de esquerda na mídia. E os jornais de esquerda têm também publicidade pública e privada que lhes permitem manter uma boa qualidade e pagar bons salários aos jornalistas.
Comunicação é uma peça chave num governo, por que a presidenta Dilma não premiou um de seus antigos colegas e colocou na sucessão de Franklin Martins um competente jornalista de esquerda, capaz de permitir o surgimento no país de uma mídia de esquerda financeiramente forte ?
Exemplo não falta. Getúlio Vargas, quando eleito, sabia ser necessário um órgão de apoio popular para um governo que afrontava interesses internacionais ao criar a Petrobras e a siderurgia nacional. E incumbiu Samuel Wainer dessa missão com a Última Hora. O jornal conseguiu encontrar a boa receita e logo se transformou num sucesso.
O governo tem a faca e o queijo nas mãos – vai continuar dando o filet mignon aos inimigos ou se decide a dar condições de desenvolvimento para uma imprensa de esquerda no Brasil ?