Entrevista especial com Leandro Konder.
É com
profunda tristeza que nos despedimos de Leandro Konder. Ser humano
extraordinário, autor, coordenador de coleção, conselheiro e, acima de
tudo, um amigo e companheiro de lutas. Konder sofria de Mal de Parkinson
e faleceu em sua casa nesta tarde do dia 12 de novembro.
Leandro
foi um dos mais importantes filósofos marxistas do país.
Filho do líder
comunista Valério Konder, foi preso e torturado durante a ditadura
militar brasileira e se exilou, em 1972, na Alemanha e, posteriormente,
na França. Regressou ao país em 1978 e passou a se dedicar com afinco ao
estudo das obras de Lukács e ao seu projeto de difundir o marxismo em
terras brasileiras. Pela Boitempo, publicou Em torno de Marx, Sobre o amor e As artes da palavra. Desde 2005 coordenava a coleção Marxismo e Literatura, a qual passou a ser dividida com Michael Löwy no último ano.
Na esteira
das homenagens da editora a Leandro Konder, o Blog da Boitempo
disponibiliza a entrevista completa realizada por Emir Sader e Maria
Orlanda Pinassi para a Margem Esquerda #5.
Também participa como interlocutor da conversa Carlos Nelson Coutinho,
ou “Carlito”, que também nos deixou cedo demais no final de
2012. Abaixo, o texto integral; o leitor também tem a opção de baixar a
entrevista completa diagramada em PDF clicando aqui.
* * * * * *
Leandro
Konder é um desses intelectuais que dedicam a vida à crítica social e à
construção do socialismo. A inquietação teórica é marcante em sua obra,
tão vasta como essencial aos leitores de Georg Lukács, Antonio Gramsci,
Walter Benjamin, Fourier e Flora Tristan, entre outros autores e
militantes do combate anticapitalista que Leandro ajudou a tornar
conhecidos no Brasil.
Numa
tarde de janeiro de 2005, Leandro concedeu esta entrevista à Margem
Esquerda, reunido com Emir Sader, Maria Orlanda Pinassi e o amigo e
companheiro de jornada Carlos Nelson Coutinho. Ficam registrados nas
páginas a seguir alguns momentos preciosos de sua trajetória singular.
Margem
Esquerda [ME] – Uma boa forma de começarmos a conversar é conhecendo um
pouco da sua formação marxista e da influência que seu pai – Valério
Konder – eventualmente exerceu sobre ela.
Leandro Konder [LK] – Meu pai era catarinense de Itajaí. O pai dele foi prefeito da cidade durante muitos anos.
ME – Em que época foi isso?
LK – Fim do
século XIX, início do século XX. Mas a grande figura da história não era
o meu avô, o que eu demorei um tempo para perceber, mas a minha avó,
mulher dele. Ela era uma mulher de personalidade fortíssima, teve nove
filhos; uma vez levou todos para o cais do porto, subiu uma montanha,
apontou para o mar e disse assim: “Um dia vocês vão crescer e vão
conhecer o mundo. O mundo fica lá. Isso aqui é Itajaí. Itajaí não é o
mundo”. Em linguagem figurada, exagerando um pouco, eu diria que ela
tinha uma personalidade tão forte que neurotizou os nove filhos. Uns
eram mansos, outros bravos. O filho mais velho era integralista, foi
preso como espião: passava informação aos alemães e aos japoneses
durante a guerra. Na prisão, os outros o inocentaram, dizendo que ele
era tão boquirroto que ninguém lhe contava nada. Então ele foi absolvido
por essa razão infamante.
Papai estava
entre os doidinhos mansos; ele veio para o Rio de Janeiro estudar
medicina. Chegou aqui e logo entrou em contato com os comunistas.
Convertido, passou a influenciar a mãe, que não era nem nunca foi
marxista, mas apoiava a opção do meu pai pelo comunismo por motivações
não muito racionais, por afeto, talvez, mas também porque era muito
inquieta no plano religioso. Ela foi sucessivamente crente de várias
religiões, menos da católica, que era a religião da sogra, com quem ela
se dava muito mal. Terminou a vida como rosa-cruz.
Meu pai
começou a trabalhar como médico em um hospício – ele queria ser
psiquiatra; depois desistiu, procurou a medicina social e se tornou
sanitarista. Na ocasião, ele tinha um amigo chamado Leandro Ratzbona, a
quem devo meu nome. Ratzbona, cujo nome tem origem latina, vinha de uma
cidade do sul da Alemanha e era um apaixonado por filosofia,
especialmente por Kant. Papai leu Kant, mas preferiu seguir o caminho
dos marxistas. Ele não tinha uma boa base filosófica marxista,
preferindo adotar idéias próprias; em todo caso, superou o determinismo
mais duro. Ele falava para mim: “O sujeito faz as coisas, as coisas são
condicionadas, mas o homem é capaz de fazê-las”. Eu, ainda estudante,
querendo me tornar marxista, acabei por me tornar um materialista
vulgar; mas meu pai me ajudou a superar isso. Esse papel do sujeito na
história bagunçava o esquemão do materialismo vulgar.
O negócio
dele era a ação, tendo participado de algumas atividades paralelas à
revolução de 1935 e, por causa delas, acabou sendo preso. Já casado com
minha mãe, que estava grávida, ele teve de fugir. Em Petrópolis, minha
mãe entrou em trabalho de parto. Assim que ele entrou na casa de saúde,
foi preso. Assim, nasci dando origem à prisão do meu pai, o que já me
garante vinte anos de análise.
Outro
momento importante foi quando descobri a pobreza da literatura na
vulgata marxista, no marxismo oficial, dominado por soviéticos
esquemáticos, sectários. Eu, que me interessava pela cultura, pela
literatura, perguntei se ele conhecia algum marxista sério, estudioso da
literatura, que pudesse me recomendar. Na época, meu pai era secretário
do Movimento Geral dos Partidários da Paz no Brasil, uma organização
“biombo” do Partido Comunista, e por conta disso viajava sempre para a
França. Em uma das viagens ele me trouxe o livro La signification presente du realisme critique1, de Lukács, que tinha acabado de ser publicado por lá. Meu primeiro contato com Lukács veio daí.
ME – Em que ano foi isso?
LK – 1959.
ME – Você já tinha se formado?
LK – Sim, em
direito. Tentei ser advogado criminalista, mas não deu certo, por isso
me tornei advogado sindical. Ao mesmo tempo, eu continuava interessado
por questões literárias e aquele livro de Lukács fez a minha cabeça. Na
seqüência eu encomendei outros livros dele, como A destruição da razão2.
Por conta disso descobri um baiano doidinho, que também se interessava
por Lukács – o Carlos Nelson. Ele escreveu um artigo absolutamente
entusiasmado por Sartre3 e o enviou para a revista Estudos Sociais,
de cujo comitê de redação eu fazia parte. O artigo causou
constrangimento entre alguns companheiros, mas resolvemos criar uma nova
seção – Problemas e debates – só para publicar o artigo do Carlos
Nelson.
ME – Quando você entrou no partido?
LK – Em
1951. Em 1950 meu pai foi candidato ao Senado. Peguei gosto, fiz
campanha eleitoral, coloquei faixas, cartazes, fiz papel de massa nos
comícios. Nós éramos os auxiliares, nos infiltrávamos na massa e quando
o companheiro falava, dizíamos em coro “É isso mesmo, é isso mesmo”. Em
1951 perguntaram-me se eu queria desenvolver essa atividade em caráter
permanente. Ali mesmo me recrutaram, o que me criou um problema
desagradável, porque o programa mais importante da minha vida até então –
a esperança de felicidade – era a festinha de sábado à noite, em
Ipanema. Por isso eu dormia de madrugada e muitas vezes via o sol raiar;
domingo de manhã bem cedo, sete horas, minha tarefa era subir a favela
para distribuir material, mas eu faltava. Fui advertido duas, três
vezes… Fui salvo pelo gongo; a denúncia contra os crimes de Stalin
cancelou a minha punição e acabei sendo considerado precursor de novos
métodos. Eu não tinha a menor idéia do que seriam esses novos métodos.
Achava que para ter método tinha que ser durão e eu era favorável aos
métodos stalinistas. Não se devia alterar aquilo. Mas, justo eu, fui
pioneiro da mudança. Um dia encontrei o companheiro Hélio, era esse o
seu nome de guerra, em um botequim no Flamengo e ele me chamou de
“precursor”. Eu tive a fraqueza de caráter de aceitar.
ME – Quem é a sua geração dentro do PCB?
LK – Tenho
uma idéia de proximidade com o Givaldo [Barbosa], com a Zuleika
[Alembert] – que era um pouco mais velha – e com o Armênio Guedes, que
era bem mais velho. Aliás, o Armênio é um fenômeno; ele tem 80 e tantos
anos, mas segundo o [Milton] Temer e o Carlito [Carlos Nelson], ele
envelheceu até os 40, desde então permanece o mesmo. O [Luís] Werneck
Viana, mais moço do que eu, e os irmãos Cupertino – o Renato e o Fausto.
ME – E no plano cultural, aqueles que depois estiveram no CPC [Centro Popular de Cultura da UNE]?
LK – No CPC, os meus amigos eram o Vianinha e o João das Neves. Outros, como o [Carlos] Vereza, eu apenas conhecia.
ME – E a revista Estudos Sociais?
LK – Na
revista estavam o Astrojildo Pereira, já muito velhinho, o Mário Alves e
o Jacob Gorender. O Armênio era o dissidente, mas convenceu os demais
de que era preciso renovar os membros da revista; acabaram colocando
três jovens: o Fausto Cupertino, o [Jorge] Miglioli e eu. Mas eu não
percebia o que estava acontecendo. Havia uma luta interna, uma
divergência política profunda entre o Armênio e os outros.
ME – O debate se dava a partir do XX Congresso do PCUS, entre a linha dura e o kruschevismo?
LK – Não era
bem isso, não. Era mais complicado, tinha que ver com a política
interna. Era o seguinte: o Armênio tinha a idéia de criar um partido de
novo tipo, um partido que não se prendesse a URSS, mas para isso era
preciso apoiar o nacionalismo. Daí a atitude dele simpática ao ISEB
[Instituto Superior de Estudos Brasileiros], que elaborava uma doutrina
nacionalista. O Gorender e o Mario Alves tinham uma visão bastante
crítica disso. Às vezes eu estava com um, às vezes com outros, mas
ninguém criava caso, o clima era simpático. Entre os jovens o primeiro
que falava era eu, depois falava o Miglioli, pouco, e o Fausto fechava.
A revista
quase sobreviveu ao golpe de 1964; chegaram a liberar algum dinheiro
depois disso. Portanto, não tínhamos problemas de recursos, além de que
havia um número pronto, com a análise da conjuntura, mas se chegou à
conclusão de que seria uma aventura publicá-la. Recuamos e o número que
estava pronto não saiu.
ME – Depois de Lukács, qual é o outro ciclo de influência na sua formação?
LK – Depois
do Lukács veio o Gramsci. O Carlito já se antecipava nisso, foi ele quem
descobriu a originalidade do Gramsci. Eu tinha lido alguma coisa dele,
mas o Carlito conhecia melhor sua obra. Então passei a ser lukacsiano na
teoria filosófica e gramsciano na teoria política. O Trotski eu li mal e
porcamente, com grande preconceito. Do Freud comprei um livrinho em um
sebo – A interpretação dos sonhos –, argumentando comigo mesmo:
“Bom, eu preciso ler também o Freud, que escreve com muita clareza,
para me expressar melhor em alemão”. Passei a noite toda lendo e pela
primeira vez tive a sensação de que, como marxista, eu sabia mais do que
Freud. Anos e anos mais tarde, no exterior, fodido, voltei a ler Freud
mais seriamente e cheguei à conclusão de que esse filho da puta sabia
mais coisas do que eu. Aí a desgraça se abateu sobre a minha vida, pois
ele me fez rever tudo…
ME – Qual foi a primeira vez que foi para a Europa?
LK – 1967.
ME – Já no exílio?
LK – Ainda
não. Em 1967 fui convidado para ir à Romênia. O embaixador romeno no
Brasil gostava muito do meu pai e um dia ele me disse: “Como membro da
Associação de Escritores, tenho a possibilidade de sugerir que eles
convidem você para ir à Romênia”. Foi a minha primeira vez no exterior,
e na volta passei um mês na Itália, que ninguém é de ferro. Muitos anos
depois voltei a encontrar-me com ele, arrasado com a história da
Romênia.
Em 1968 eu
voltei para a Europa como co-organizador de uma delegação de brasileiros
no Festival Mundial da Juventude em Sófia, na Bulgária. Em 1969 fui
para Berlim Oriental receber uma homenagem póstuma a meu pai, que tinha
falecido recentemente. Com isso, eu estava indo uma vez por ano; mas em
1970 não, porque fui preso. Aliás, essa parece uma história do barão de
Itararé, que falava de um professor que foi preso por causa do terceiro
cafezinho, apesar de a mãe dizer a todo instante que ele ia se dar mal.
Eu adaptei essa piada à minha própria história: não fui à Europa e me
prenderam. Em 1971 voltei para estudar alemão e, depois, em 1972, fui
para lá, aí sim, já exilado.
ME – Durante quanto tempo você ficou exilado?
LK – O
exílio durou três anos. Eu fui absolvido, mas como estava trabalhando
não dava para voltar de repente e fiquei mais três anos fora.
ME – Em que cidade da Alemanha você morava?
LK – Em Bonn, uma cidade muito chata.
ME – Assim como Brasília?
LK – Não,
Brasília tem aquelas audácias do Niemeyer. Em Bonn, a única coisa mais
interessante é a casa do Beethoven, mas se omite o fato de que, assim
que chegou à maioridade, ele foi embora, saiu daquela casa correndo. Eu
fiquei na Alemanha durante cinco anos, de 1972 a 1977; depois, mais um
ano e meio no sul de Paris, participando das atividades dos comunistas
brasileiros na França. Foi quando eu me casei com a Cristina.
ME – Os cinco anos que você ficou na Alemanha foram em Bonn?
LK – Que podem se contados em dobro, por insalubridade…
ME – E o que você fazia lá, qual era sua atividade?
LK – Eu
trabalhava na universidade, onde era leitor de literatura brasileira e
de língua portuguesa. Lá eu conheci um colombiano chamado Gutierrez
Girardot, com traços de índio, que tinha sido aluno do Heidegger, mas
também era marxista, um heideggeriano-marxista. Ficamos amigos e ele me
dizia: “Você tem dois defeitos. Primeiro, você é leninista. Lenin no tiene caracter.
Em segundo lugar, você é admirador de Lukács, que alugou seu talento a
serviço de Stalin”. Apesar de tudo, ele dizia aquilo com amizade, me
protegia e me garantia o emprego. Na época eu trabalhava pouquíssimo e
ganhava bem, em marcos alemães, e logo que começavam as férias eu
aproveitava para viajar pela Europa.
ME – Você já tinha incorporado Lukács. Na sua estada na Alemanha, quem mais você incorporou teoricamente?
LK – Um
amigo meu, que nunca se entusiasmou muito pela filosofia do Walter
Benjamin, ficou muito impressionado com o talento dele. Esse meu amigo
está aqui presente [referindo-se a Carlos Nelson]. Ele leu Benjamin
antes de mim, mas acho que mergulhei mais profundamente no universo
benjaminiano. E isso tem que ver muito com a minha temporada na
Alemanha.
Carlos
Nelson Coutinho [CNC] – Quem primeiro leu Benjamin foi o [José
Guilherme] Merquior. Ele nos recomendou ler A obra de arte na época da
sua reprodutibilidade técnica4. Mas não me lembro de ter lido Benjamin antes de você.
LK – Leu,
sim. Eu trouxe Benjamin para essa constelação, para esse universo não
muito claro, não muito coerente, de referências marxistas filosóficas
heterogêneas. Foi aí que entrou o Benjamin. Se fosse para escolher
alguém de uma área conexa, o Carlito escolheria o Adorno. Você é mais
adorniano do que benjaminiano.
CNC – Não sou, não, mas acho que o Adorno é o centro de um pensamento muito mais sólido.
LK – Politicamente não tenho dúvida, mas filosoficamente…
ME – Como vocês já disseram, às vezes é difícil delimitar o que é Carlos Nelson, o que é Leandro Konder.
LK – É verdade, é outra confusão também.
CNC – Como falou o Chico [Buarque] sobre aquela confusão de pernas: “e agora com que pernas eu devo seguir?”.
ME – Certa
vez Carlos Nelson disse que se sentia meio cabotino ao fazer homenagem a
você, que se sentia como se estivesse fazendo homenagem a si mesmo. O
caminho de vocês, com essa proximidade, é similar ao de outros
intelectuais?
LK – Marx e Engels.
ME – E quem é quem?
LK – Eu acho que eu sou Engels, mas um Engels mais bem-humorado.
CNC – Mais
bem-humorado do que o Engels é impossível. O Marx é que era
mal-humorado. Mas acho que a pergunta é no sentido de brasileiros que
seguiram mais ou menos o mesmo percurso.
ME – Não exatamente, mas de gente que fez dupla intelectual, que teve uma alimentação mútua.
CNC – Esse também foi o caso de Adorno e Horkheimer. Mas nós nunca escrevemos nada juntos, a não ser coisas circunstanciais.
LK – Uma resenha na revista Civilização Brasileira, condenando a invasão da Tchecolosváquia, em um ato de indisciplina, para forçarmos a direção a nos punir.
CNC – Assinado por nós dois existe ainda o prefácio à primeira edição do Gramsci.
LK – Que não corresponde precisamente nem ao que eu nem ao que você pensávamos, mas acabamos chegando a um certo acordo.
ME – Vocês já tiveram alguma divergência teórica ou política importante?
CNC – Eu era mais fanaticamente lukacsiano do que o Leandro. Ele já tinha algumas aberturas para Gramsci, para Benjamin.
LK – Eu tinha tendências revisionistas mais fortes do que ele.
ME – E politicamente, houve alguma vez em que as diferenças pesaram?
CNC – Não.
ME – Vocês sempre caminharam juntos na crítica às orientações do partido?
CNC – Que eu me lembre, nós nunca gostamos da União Soviética, malgrado o pai do Leandro ser pró-soviético.
ME – Você e seu pai brigavam muito, Leandro?
LK – Não, eu
evitava brigar com ele. Lembro-me, por exemplo, de quando dois
escritores – Siniavsky e Daniel – foram condenados na União Soviética.
Eu escrevi um artigo crítico, que saiu publicado n’A Folha da Semana,
um jornal do Partido Comunista, dizendo que não tinha lido os dois
autores, que eles até podiam ser horrorosos, mas que cabia à sociedade
civil puni-los, deixando que os livros encalhassem nas prateleiras.
Então, saiu um manifesto assinado por intelectuais do Rio e nele estavam
a minha assinatura e a da minha ex-mulher. Meu pai ficou puto e foi se
queixar de mim pro Carlito…
CNC – Eu estava na Bahia e por isso não assinei…
LK – Ele
achou que talvez você tivesse se preservado da contaminação e do horror.
Ele disse: “Olha aqui. Assinou o Leandro e ainda por cima assinou duas
vezes”.
CNC – Quer
dizer, ele e a mulher. Ir contra uma decisão do Comitê Central do
Partido Comunista da União Soviética parecia um absurdo a dr. Valério.
ME – Qual foi o primeiro livro que você publicou?
LK – Se chamava Marxismo e alienação5. Enquanto eu o escrevia, preparei também a tradução dos Ensaios sobre literatura6, um livro do Lukács, publicado em 1965, em que eu assinava a apresentação.
ME – Esse livro foi ainda no Brasil, não? Depois disso o que veio?
LK – Em 1966 veio Kafka: vida e obra, que faz parte de uma coleção da José Álvaro Editora, depois comprada pela Paz e Terra. O terceiro foi Os marxistas e a arte7, um livro que o Michael Löwy resenhou, fazendo algumas críticas bem contundentes, mas muito civilizadas e corretas.
ME – Era um conjunto de ensaios sobre arte?
LK – É, mas tinha um capítulo sobre Trotski que o Michael não gostou.
CNC – A resenha do Michael nunca foi publicada porque era para o número quatro da Teoria e Prática,8 que não saiu. Mas o Michael mandou uma cópia para o Leandro.
ME – Essa foi a primeira aproximação entre vocês?
LK – A gente
já se conhecia, mas não tinha intimidade. Eu conheci o Roberto
[Schwarz] antes do Michael, de quem me aproximei no exílio. Uma vez, o
Roberto veio ao Rio e fomos ao teatro ver uma peça do Chico Buarque, Roda viva.
Lembro-me de ter ficado com um medo danado de alguns atores me
identificarem e fazerem algumas brincadeiras desagradáveis. Eles jogavam
pedaços de fígado na platéia e minha camisa era nova.
ME – Isso foi tudo que você publicou no Brasil antes do exílio ou outras obras foram publicadas?
LK – Publiquei Marx: vida e obra, naquela mesma coleção da José Álvaro Editora (1967). Depois, já no exterior, publiquei Introdução ao fascismo9, em 1976.
CNC – Você passou um bom tempo sem publicar.
LK – Com essas confusões todas de adaptação, mudança de vida.
ME – Você não escreveu livros de análise sobre o Brasil?
LK – Não, tem um livro meu, bem ruinzinho, Os comunistas e a democracia no Brasil, sobre a conjuntura brasileira, especificamente sobre o Partido Comunista.
ME – Na sua estada na Alemanha, o que você publicou ou acumulou para publicar depois?
LK – Quando voltei da Europa, publiquei um livro sobre Lukács10 e O que é dialética11, que vendeu bem.
CNC – Esse livro chegou à 30a edição.
LK – Na seqüência vieram o Barão de Itararé: um humorista da democracia (1981) e O marxismo na batalha das idéias12, um conjunto de ensaios. Vieram ainda A derrota da dialética13, minha tese de doutorado, e Walter Benjamin. O marxismo da melancolia14.
ME – O livro A derrota da dialética foi bem criticado.
LK – O
Prestes, por exemplo, ficou muito irritado com o livro; disse que eu não
fazia diferença entre a dialética idealista e a dialética materialista.
Ele fala isso numa entrevista: “o Leandro escreveu sobre a morte da
dialética”. Na cabeça dele a dialética é invencível, portanto se a
dialética foi derrotada, ela morreu. Essa é a conclusão dele. Depois eu
entendi o lapso, mas é curioso isso. Tinha um outro resenhador crítico,
que falou o tempo todo que o título do livro mudou para A reforma da dialética.
A dialética marxista precisava ser preservada, não podia ser submetida a
aventuras revisionistas ousadas demais. Então, se o livro é bom, não
teoriza sobre a derrota da dialética, sobre a reforma da dialética. Daí
vem o outro ato falho dele, de ter mudado o título do livro. Foi o José
Nilo Tavares, que morreu.
ME – Esse foi o seu livro mais polêmico?
LK – Acho que sim. Depois tem um livro de interesse filosófico na política que é O futuro da filosofia da práxis15. Os intelectuais e o marxismo16 é um conjunto de artigos que eu escrevi para a Tribuna da Imprensa, ao longo de 1990, com caráter jornalístico.
ME – Você falou do Lukács, do Gramsci e do Benjamin. E os debates sobre o estruturalismo francês, o Althusser…
LK – Eu me lembro de ter acompanhado com emoção o trabalho do Carlito O estruturalismo e a miséria da razão17.
Eu fiquei solidário, mas achava aqueles textos do Althusser muito
chatos. Eu o entendi melhor depois que ele morreu, quando saiu o livro O futuro dura muito tempo.18 Fiquei comovido, mas já era tarde. Depois vêm Flora Tristan e Fourier19, um mergulho na utopia.
CNC – Tem também um livro que foi republicado recentemente, As idéias socialistas no Brasil20.
LK – É um
livro de divulgação, republicado pela editora Expressão Popular, do MST,
uma edição linda, com fotos. A edição original era mixuruquinha e a
editora do MST fez do livro uma edição da qual me orgulho. A Expressão
Popular também republicou o meu livro sobre Marx. Depois disso vem o
livro sobre Brecht21, que escrevi pelo prazer da leitura dos
seus poemas. Ele escreve de maneira muito simples e ao mesmo tempo muito
elegante e gostosa. Fiz a mesma coisa com a história dos romances de
Balzac, que não saiu, porque ao relê-lo o achei meio transbordante.
Preferi então fazer uma versão condensada do texto que acabei
incorporando ao novo livro que vai ser publicado pela Boitempo22, que – além do Balzac – tem um audacioso ensaio sobre Fernando Pessoa.
CNC – Você já tinha escrito sobre Fernando Pessoa23 em 1961, com um título meio caiopradiano.
LK – Aquele era um ensaio, este de agora é completamente diferente.
ME – Depois vem o livro sobre ideologia24, que é o último.
LK – Tem os dois romances também – Bartolomeu e A morte de Rimbaud25.
ME – Você tem algum livro em andamento?
LK – Tinha, mas morreu. Criei problemas que eu não soube resolver e extinguiu-se.
CNC – Você não vai retomar?
LK – Acho muito difícil. Existem mortes provisórias e mortes definitivas. Acho que esta é definitiva.
ME – Vamos
falar um pouco do século XXI. O que você considera que foi importante no
passado e que continua sendo importante na atualidade?
LK – Como é que a gente faz para reavivar essas coisas…
CNC – O que você acha que ficou do marxismo para o século XXI?
LK –
Basicamente a filosofia, a concepção marxista do homem, a concepção da
história. Há outras coisas que se tornaram mais complicadas.
ME – A teoria da alienação se mantém?
LK – Talvez,
mas isso não está muito claro para mim. Talvez ela tenha de ser
desenvolvida e aí ressurja. As análises políticas do Marx eu acho que
estão envelhecidas.
CNC – Quais, por exemplo? A luta de classes é ainda uma categoria vigente?
LK – No
espírito, na origem dessa teoria, é o que me é muito caro. Acho que ela é
reveladora de uma contradição subterrânea profunda e permanente. O
terreno da luta de classes desvela uma contradição essencial. Mas os
escritos em que Marx trata da luta de classes têm a marca de um certo
envelhecimento.
CNC – Quer dizer que a luta de classes mudou, mas não acabou?
LK – Eu acho
que ela assumiu formas novas, muito complicadas, e não estamos ainda em
condições de dominar esse conhecimento das suas novas formas.
ME – Quais são os autores contemporâneos que te ajudam a repensar essas questões?
LK –
Encontrei estímulos em autores como Perry Anderson, de quem eu li
algumas coisas interessantes; o [Fredric] Jameson também tem movimentos
interessantes.
CNC – Acho
melhor ler o Gramsci pela vigésima vez. Lembra que o Lukács dizia que,
em vez de ler os neopositivistas, é melhor reler Aristóteles pela décima
vez?
ME – E sobre o Brasil, quais foram os autores que mais o ajudaram a compreendê-lo?
LK – Eu
gosto muito do Antonio Candido, que faz crítica literária e da cultura
como chaves para entender mais amplamente o modo de produção e de
organização da cultura brasileira. Eu gosto do Sérgio Buarque; eu gosto
do Caio Prado, como historiador, não como filósofo. Li pouco do
Florestan, não tenho condições para opinar. O Nelson Werneck Sodré tem
algumas coisas muito boas, equilibradas, sensatas, mas às vezes é um
tanto limitado.
ME – E na literatura? Quais são seus autores preferidos – brasileiros, estrangeiros, poetas, ficcionistas?
LK – Eu gosto muito do Fernando Pessoa, do Kafka, do Proust; gosto de Graciliano Ramos, do Grande Sertão: Veredas e
de outros contos do Guimarães Rosa. Gosto daqueles contos
violentíssimos, devastadores, do Rubem Fonseca, gosto também do romance Agosto. Na poesia, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto e Ferreira Gullar. E Brecht.
ME – Além da política e da vida intelectual, de que mais você gosta? De futebol?
LK – Gosto muito.
ME – Você jogou?
LK – Certa
vez fiz uma tentativa como zagueiro em um time de praia, mas eu era
muito ruim. Então encerrei minha carreira com um gol contra.
ME – Você assistiu algum jogo memorável na sua vida?
LK – Eu vi a
final da Copa de 1950: Brasil e Uruguai. Fomos com meu pai ao Maracanã.
Eu tinha 14 anos e meu irmão 12; até levamos um caixotinho porque ele
era pequenino.
ME – Pode ter havido umas 200 mil pessoas nesse dia?
LK – Pode ter havido, não época eu não tinha elementos para calcular.
ME – Os três gols foram em um arco só. Você estava perto ou longe desse arco?
LK – Eu
estava longe, por isso tive certa dificuldade em aceitar que tinham sido
gols, sobretudo o segundo. Eu me lembro de cenas, na saída do estádio, o
povo indo embora – e era grande a quantidade de homens – chorando. Para
aquela geração não tinha isso de chorar. Todos ouviam, desde pequenos:
“homem não chora”.
ME – Seu pai e você choraram?
LK – Meu pai não queria nem que se falasse no assunto.
CNC – Seu pai gostava de futebol?
LK – Não.
Ele foi para esse jogo no entusiasmo, patrioticamente, interessado pelas
coisas da política porque, na época, ele era candidato a senador.
Estávamos em julho e as eleições seriam em setembro. Na saída, eu via
muita gente chorando, alguns vomitando, um trauma bravo.
ME – Como você viveu momentos trágicos, como a morte do Getúlio e o golpe de 1964?
LK – A morte
do Getúlio eu vivi como uma situação surreal. Na época, estudava na
faculdade, que ficava a duzentos metros do Palácio do Catete. Era a
Faculdade de Direito, primeiro da Universidade do Distrito Federal, mais
tarde Universidade do Estado da Guanabara, por último UERJ. Lá pelas
8:30 h eu estava caminhando para ver se encontrava um amigo, como não o
encontrei fui ao Palácio do Catete. Quando o Getúlio se matou eu estava
na frente do Palácio do Catete. Mas eu não sabia disso. Então, peguei um
ônibus e quando estava chegando em casa, na praça General Osório,
alguém gritou: “O Getúlio se matou! O Getúlio se matou!” Eu nem desci do
ônibus, fui direto até a casa da minha avó, entrei, ela não sabia de
nada, eu disse: “Vamos ligar o rádio!”. Ligamos o rádio e aí veio a
leitura da carta-testamento e a notícia da morte do Getúlio. Depois
disso, eu tive a minha primeira idéia política própria; até então eu era
um mero repetidor e continuei um pouco assim. Mas aí eu me disse: “Bom,
com o suicídio, com essa carta-testamento, temos de nos voltar
amistosamente para as massas trabalhistas. São nossos aliados, queiram
eles ou não, vamos trabalhar juntos.
ME – Quantos anos você tinha?
LK – 18.
ME – Algum outro momento, como o XX Congresso do PC da URSS, foi marcante?
LK – Foi,
foi muito marcante. Durante anos eu guardei o relatório do Kruschev e
ainda devo ter em algum canto por ai. O partido dizia que aquilo era
falso, que havia sido forjado pela CIA, mas depois se viu que era
verdadeiro. Eu li o relatório secreto e fiquei muito impressionado. Aos
poucos fui me dando conta de uma coisa que me impressionou muito: era a
falta de marxismo do Kruschev. A análise que ele fez dos crimes do
Stalin é uma análise moralista, sem qualquer interpretação de inspiração
marxista.
CNC –
Togliatti disse isso. Quando responde a uma pergunta sobre o stalinismo,
ele diz que o culto à personalidade não é um conceito marxista.
ME – O golpe de 1964 também foi um momento marcante para você?
LK – O golpe
de 1964 foi uma coisa mais direta. Em 1964, quando veio o golpe, as
conseqüências sobre nós foram mais profundas. O pessoal do partido ficou
atarantado. Eu lhes contei a história da revista Estudos Sociais, o pessoal queria lançar a revista, outros disseram: “Não, não lancem, que a ditadura é pra valer”.
ME – O
Prestes teria declarado, em Recife: “Estamos no governo, vamos para o
poder”; havia a perspectiva de uma vitória estratégica.
CNC – Ele
declarou na televisão, em março de 1964, que o candidato do partido para
as eleições presidenciais de 1965 era Jango Goulart. Aí lhe disseram
que o Jango não podia, pela Constituição, e ele respondeu; “Muda-se a
Constituição”. A idéia do nosso lado era meio golpista.
ME – E também havia o “Cunhado não é parente, Brizola presidente”.
CNC – Mas o partido não era brizolista, pelo contrário. O Brizola estava à nossa esquerda.
ME – Não se pensava no Juscelino?
LK – Não. Nós apoiamos o Negrão de Lima [eleito governador do Rio de Janeiro em 1965].
ME – No dia do golpe, onde você estava?
LK – No dia
do golpe eu fui procurar um amigo que hoje é presidente da Academia
Brasileira de Letras, o Ivan Junqueira, poeta, que não era comunista, e o
João das Neves, que era ator e autor, que também não era do partido.
Fomos zanzar pelo centro da cidade, com uma situação tensa. Lembro da
história meio cômica em que o João ia passando pelo meio da rua e um
soldado disse que não podia. “E na calçada, pode?” “Na calçada pode”.
Então o João, que tinha treino físico, andava pelo meio-fio, ao lado do
soldado, que ficava esperando, com o cassetete na mão, na rua, pra dar
uma porrada nele. Vimos também um grupo que hostilizava jogando pedras
na embaixada dos Estados Unidos.
ME – Qual foi a principal reação do partido diante do golpe?
LK –
Perplexidade. Lembro-me de que no dia soubemos que o golpe tinha vindo
mesmo, porque antes só havia boato. Então nós fomos lá para casa, lembro
que tinha um cara que botou os pés em um banquinho de cozinha que
estava na sala e disse: “Companheiros, cabeças vão rolar. Por erros
nossos, erros graves, cabeças vão rolar”. Achei a coisa sinistra. A
gente sofria uma derrota daquelas e o cara achando que nós é que éramos
os responsáveis por aquilo.
ME – Você tinha estado no comício de 13 de março? Do que você se lembra?
LK – Da mulher do Jango. Eu estava lá, infiltrado, perto do palanque, para vê-la.
ME – Era o maior comício em que você havia estado na sua vida?
LK – Era um
comício enorme. Gente da minha família falava que aquilo era um “comício
das lavadeiras”, falavam de tanques e de roupa suja. Eu fiquei
indignado, um comício daquele tamanho, marcante…
CNC – Roupa suja, por quê?
LK – Roupa suja por causa das fofocas, das rivalidades, quem vai derrubar quem, quem vai assumir no lugar de quem.
CNC – Teve muita gente ali, mas não tanta gente assim. Calcula-se hoje que havia umas 300 mil pessoas.
ME – Há pesquisas do Ibope, não divulgadas na época, que demonstravam que o governo tinha muito apoio.
CNC – Apoio
ele tinha, havia ganhado o plebiscito em janeiro de 1963, ganhou com
proporção de 5 a 1. Havia até uma musiquinha: “Eu vou fazer o x no
quadrinho ao lado da palavra não, parlamentarismo não”.
LK – Lembra
da outra musiquinha? “Na hora de votar, eu vou jangar, eu vou jangar, eu
vou votar no Jango Goulart. Para vice-presidente eu já tenho em quem
votar, no Jango Goulart”. A música do Lott era: “Espada de ouro, quem
tem é o marechal, Lott, Lott, por que ele é o ideal, porque defende o
petróleo, que é meu e de você”. Tinha que dar merda. Em 1955 eu votei no
Juscelino, sou veterano.
CNC – Fala um pouco do governo Lula, o que você está achando?
LK – Eu acho
que ele tem um capital de popularidade, de imagem, que está desgastada,
mas que tem força e ele ainda mantém um caminho que pode dar na
reeleição. Se vier crise é ruim, porque põe a esquerda contra a parede, e
ela se ressente de Lula não ter dado certo, independentemente da
autonomia, da postura crítica. Mas, se der certo, a esquerda também fica
mal, porque fica sangrada, anêmica, enfraquecida…
CNC – Se der certo em que sentido?
LK – No sentido da reeleição.
ME – Quando é que você se deu conta de que esse não era um governo de esquerda?
LK – Quando
os meus amigos me convenceram disso. Segundo o Temer, o acordo foi feito
antes das eleições, a montagem do gabinete com o Meirelles e o Palocci.
ME – Essa situação de um governo de esquerda, com um dirigente de origem operária, você compara com que outra situação?
LK – Os
casos que me ocorrem não servem. As diferenças são mais importantes que
as coincidências. As experiências socialdemocratas são muito variadas,
contraditórias, às vezes perversas, nenhuma delas dá conta do que está
acontecendo no Brasil agora.
ME – Por que
o Brasil, que tinha uma esquerda comparativamente mais atrasada que
outros países da região – o Chile, o Uruguai, de alguma maneira a
Argentina –, de repente se tornou a contramão da esquerda, que tinha o
Lula, o PT, a CUT, o MST, o orçamento participativo? A esquerda nunca
foi tão fraca, em escala mundial, desde que inventaram a palavra
esquerda. De repente, o Brasil tornou-se o elo mais frágil da cadeia.
LK – Tem um
negócio que não está muito claro pra mim: que força nós conseguimos
efetivamente ter a partir do movimento de massas? Será que esse
movimento de massas tem uma força na qual nós podemos nos apoiar, ou é
só aparência? Será que o movimento de massas tem força própria ou será
uma força ilusória?
CNC – Mas
teve. O próprio PT surgiu em função disso, do fato de que havia um
movimento de massas significativo. Agora eu acho que está
debilitadíssimo. Tirando o MST, que mesmo assim está meio…
ME – O PT
foi criado em função desse movimento de massas, mas foi se distanciando
dele. Em razão disso, o que você pensa do futuro dos partidos
políticos? O partido político ainda tem uma dimensão importante na luta
pelo socialismo?
LK –
Baudelaire, o poeta que eu cito há cinqüenta anos, diz: “Só se destrói
realmente aquilo que se substitui”. Não acho que os partidos políticos
tenham sido substituídos ou possam ser substituídos agora, de repente,
por outra forma. Os partidos continuam a dar conta de uma demanda real,
de uma necessidade. Nesse sentido, há uma crise dos partidos, sem
dúvida. Mas a gente tem de pensar a partir do arquivamento deles, do
desaparecimento deles ou a partir de uma renovação que nós não sabemos
ainda como fazer?
ME – Você participou de dois partidos na sua vida.
CNC – De três, eu diria.
LK – Durante
trinta anos, participei do Partido Comunista Brasileiro. Depois
participei do MDB [Movimento Democrático Brasileiro].
ME – Você foi para o MDB quando saiu do PCB?
CNC – Esse
foi um momento de discordância entre nós, porque eu nunca fui para o
PMDB, não. Eu diria que o segundo foi o PT, o terceiro é o Psol.
ME – A idéia
original de vocês, quando saíram do PT, era fundar um Fórum Socialista,
que abrigasse os críticos de esquerda de dentro e de fora do PT. Como
se deu a passagem rápida dessa idéia para a idéia de fundar já um
partido?
LK – Eu não
sinto muito a necessidade de atuação partidária. O Psol tem essa
tentativa de ser um partido com características diferentes dos outros.
Os outros partidos, inclusive o PT, assumiram determinadas
características meio melancólicas. O Psol tem essa aura romântica, que
eu acho simpática.
ME – Você
tem a sensação de melancolia com esse desfecho, com o PT chegando ao
governo com essa cara? Com que palavra você expressaria isso?
LK – Uma
certa tristeza de ver pessoas que a gente conheceu em outras situações –
mostrando combatividade, mostrando certa valentia – adotando atitudes
tão apagadas, tão deliberadamente adaptadas ao status quo, a uma realidade constituída, renunciando ao projeto original.
ME – Qual foi o seu momento mais entusiasta no PT, quando você mais se identificou, mais se deixou empolgar?
LK – Quando
entrei no PT, em 1989, me inscrevi na organização dos estudantes e
professores da PUC. Fui para uma reuniãozinha besta, tinha umas doze
pessoas, todos radicalíssimos. E aí minha intervenção foi provocadora e
as reações engraçadas. Se nós formos ao poder por meio de eleição, se
formos obrigados a manter um calendário eleitoral e promover a
realização de eleições que poderiam nos tirar do poder, a maioria
considerou que jamais faria essa concessão de abrir mão. Abrir mão dessa
conquista, para manter um formalismo, com a entrega do poder aos nossos
inimigos. Aí eu discordei e perguntei se eles achavam que nós teríamos
força para segurar o poder contra os nossos inimigos, vitoriosos no caso
de uma eleição. Ai comecei a desarmar os espíritos e terminei
dividindo. Dos doze, seis ficaram numa posição e seis na outra. Aí eu
acho que foi o momento em que me senti mais animado. Essa foi uma
situação que eu nunca vivi no Partido Comunista. Vivi outras emoções,
mas não essa, de ter mudado metade das posições.
ME – O momento de saída de vocês do PCB teve um sentimento similar de melancolia ao da saída do PT?
LK – No PCB,
acho que ficamos decepcionados com o fato de que no exterior nós
tínhamos alguns aliados, alguns simpatizantes na direção e a perspectiva
de vir para o Brasil fundar um jornal legal, coisa que fizemos. Mas
houve um acordo dos detentores do poder aqui no Brasil com os dirigentes
que vinham do exílio, e esse acordo levou ao nosso isolamento.
CNC – A
melancolia com o PT é maior. A forma PC já estava meio superada. O PC
não estava dirigindo o processo, o PT estava subindo. Além disso, a
forma PC já começava a demonstrar um esgotamento. Mas nós tínhamos
esperança de renovar o PC, aquela idéia do eurocomunismo que já estava
dando errado lá também. A melancolia histórica com o PT, pelo menos no
meu caso, foi mais dura. Mas eu brinco sempre: com o PC eu tinha um
casamento monogâmico, com o PT nunca tive. Então, de certo modo foi mais
fácil, nesse sentido.
ME – Como é sua relação com o MST?
LK – De
muita simpatia. Eles me prestigiam muito. Eu acho que o movimento social
que melhor reage à crise, por enquanto, embora se ressinta de algumas
dificuldades, é o MST. Mas ele não pode substituir o partido.
***
Leandro Konder
nasceu em 1936, em Petrópolis (RJ), filho de Valério Konder, médico
sanitarista e líder comunista. Formado em Direito, Leandro exilou-se em
1972, após ser preso e torturado pelo regime militar, e morou na
Alemanha e depois na França até seu regresso ao Brasil em 1978.
Doutorou-se em Filosofia em 1987 no Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da UFRJ. Em 2002 foi eleito o Intelectual do Ano pelo Fórum do
Rio de Janeiro, da UERJ. Um dos maiores estudiosos do marxismo no país,
coordena, em conjunto com Michael Löwy, a coleção Marxismo e literatura, da Boitempo, onde publicou Sobre o amor, As artes da palavra e Em torno de Marx.